Cavalos lendários
O Andaluz
Conteúdo
Prólogo
Prólogo
Turquia - Zacharias
O conhecimento não tem preço.
Barbeado e vestido com roupas ocidentais, ninguém reconhecerá o novo Irmão Zacharias, o humilde monge cóptico...
Desde a minha fuga do Egito, graças aos dólares roubados de Leyla, aquela estudante de arqueologia idiota e ignorante que, de alguma forma, conseguiu me enganar, não consigo parar de pensar no objeto. Estava cego devido à ganância, peguei o dinheiro e deixei para trás o objeto, que era bem mais precioso... A fúria me corrói como um rato nas minhas entranhas!
Quando percebi que o objeto que eu devia levar para Hannibal ainda estava nas mãos de Leyla e do amigo americano dela, eu sabia que nunca seria capaz de mostrar a cara ao meu patrono sem colocar a minha vida em perigo. Eu falhara. Fugir era a minha única opção. Depois soube através da mídia que houve um roubo misterioso no local mais seguro do Cairo, o Museu Nacional. Estava claro que Hannibal conseguira
Prólogo
recuperar o pedaço de metal precioso sem a minha ajuda. Quero entender por que este homem que já tem de tudo, que tem dinheiro, poder e glória, é tão obcecado por este triângulo de metal.
Eu sei como o pedaço de metal é porque Hannibal me enviou a foto de um outro pedaço parecido, encarregando-me com a missão de tomá-lo de Leyla. Agora sinto que posso ganhar o respeito de Hannibal de volta se eu lhe der a informação que não possui. E estou prestes a obtê-la...
Durante meu treinamento para ser um monge, eu vivia e estudava em mosteiros do mundo inteiro. Depois de muitos anos, voltei à Anatólia, no leste da Turquia. Muitas pessoas passaram por aqui: semitas, turcos, romanos, hititas, lídios, gregos, persas, árabes etc. Foram os persas que nomearam esta região de Capadócia, que significa “a terra dos belos cavalos”. Parecia até uma paisagem lunar de tão sobrenatural que era. As lembranças da minha primeira visita tomam conta da minha mente, misturando-se com o que os meus olhos veem. Um vale cheio de formações rochosas vulcânicas, cones de basalto e tufos, escavados pelo homem e chamados de
Prólogo
“chaminés mágicas”. Os declives das montanhas, a mais de novecentos metros acima da cidade de Göreme, depois um longo e estreito desfiladeiro escondido entre dois rochedos, repleto de casas e igrejas pintadas com cores vibrantes. Também lembro de uma vasta cidade subterrânea e do sentimento de claustrofobia. Respiro fundo, tentando espantar esse furacão de lembranças e concentrar-me no objetivo. Preciso chegar a Yüksek Kilise, o santuário mais alto na montanha onde fui um copista novato...
Subo as escadas gastas esculpidas na pedra pelos eremitas cristãos perseguidos no século IV, até que chego na caverna natural, ao longo do declive da montanha. Este refúgio já foi um grande mosteiro ortodoxo, antes de ser abandonado por causa de seu difícil acesso. O que aconteceu com a persistência dos primeiros monges, que trabalharam duro escavando a montanha para criar uma cantina e dutos de ventilação, assim como cubículos feito favos de mel, para sua crescente comunidade? Também escavaram túneis de fuga para serem usados em caso de ataques. Criaram uma biblioteca incrível, colecionando e categorizando as placas e pergaminhos que tinham sido levados pelos
Prólogo
desertores. É aqui, nesta biblioteca escondida e esquecida, que eu espero encontrar o que estou procurando. Minhas mãos tremem levemente enquanto retiro a barreira de proteção que bloqueia a entrada da caverna.
Caminho pelos corredores desertos com apenas o eco dos meus passos fazendo-me companhia. Tudo o que consideraram muito pesado ou sem utilidade foi deixado para trás. Cheguei na biblioteca. Lembro-me sentar nessa mesa de pedra, com uma vela para iluminar, e sentir-me frustrado e desanimado com a tarefa a ser cumprida. Para testar minha fé e meu desapego, fui encarregado de copiar pequenos textos. Eu não sabia o significado do que estava copiando, pois o pergaminho original desintegrara-se com o tempo, e o Padre Superior insistira em preservar exaustivamente todas as escrituras antigas. Rangendo os dentes, copiei as palavras incompreensíveis que pareciam-me beirar a loucura.
Um grego, que afirmava ter sido um soldado no final do século IV AC, recontava uma história incrível de fuga pelas fronteiras da Índia. Falava sobre a maldição sofrida por ele por causa de sua missão secreta, a obsessão pela estrela
Prólogo
de Zeus que lentamente consumiu o fígado e o cérebro dele. No meio do pergaminho estava um desenho que copiei com muita dificuldade, já que estava quase indistinguível, como se alguém arranhara furiosamente o papel para apagar o que fora desenhado nele. Levei uma noite inteira para copiar por completo o antigo pergaminho. Ao amanhecer, esperando por algum tipo de reconhecimento, entreguei o fruto do meu trabalho para meu irmão bibliotecário, que acenou com a cabeça antes de enrolar o pergaminho e arquivá-lo no final da pilha, na seção de pequenos textos.
Como eu já esperava, apenas as escrituras de santos ou as mais importantes foram movidas. Meu coração dispara ao aproximar-me dos arquivos na parte de baixo. Ajoelhado, procuro loucamente nas pilhas inferiores, abrindo e colocando de lado todas as cópias desnecessárias feitas pelos aprendizes durante os anos. Achei! Minha cópia, ainda intacta, a tinta quase nada desbotada. Posso sentir o sangue pulsando forte em minhas têmporas, enquanto olho o desenho no centro do pergaminho. É um triângulo de base quebrada, coberto com letras gregas e símbolos estranhos, e muito parecido com o triângulo da foto que Hannibal me enviou!
Prólogo
Começo a rir descontroladamente enquanto leio a cópia. A última frase diz que o soldado encarregara os sacerdotes de proteger o que pertencia a Zeus. Homens são tão fracos e medrosos diante da onipotência, que eles investem em seus próprios deuses... E, agora, tenho poder sobre Hannibal, já que possuo a chave para encontrar um novo pedaço da estrela de Zeus!
O conhecimento, de fato, não tem preço...
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Capítulo 1
País Basco, Nadja
Eu nunca tinha visto o mar. Sentada no topo do despenhadeiro, assisto às ondas virarem espuma branca e baterem contra as pedras. Ouço o estrondo teimoso que elas fazem, sentindo a brisa balançar meu cabelo e o gosto da maresia em meus lábios. Abro os braços e entrego meu corpo ao poder da natureza, rindo como as gaivotas quando voam sobre as ondas. Talvez eu pudesse voar para longe, planando como as aves, desafiando o vento antes de afundar na água para pegar o peixe azarado que vira presa no bico delas.
— Nadja! Venha me ajudar!
Lambo meus lábios com vontade, antes de afastar-me com cuidado da beira do penhasco. Meu pai está me olhando sério, e seus olhos parecem dizer “não viemos aqui para brincar”. Mas eu queria muito saborear o oceano, correr pelo topo do penhasco, dançar em meio às flores alegres e de cor azul-do-céu, orquídeas lilás e papoulas radiantes, e correr atrás das borboletas de cores vibrantes. Prometo a mim mesma que usarei todo o tempo livre
Capítulo 1
que tiver para explorar esta paisagem incrível. Então caminho de volta para o asfalto e para o jatinho particular que nos trouxe da Rússia; eu, meu pai e nossos cavalos.
Um tipo de carrinho de golfe já está com as nossas malas e o equipamento que meu pai quis trazer. Vejo-o andar por um caminho sinuoso entre as rochas, antes de desaparecer atrás dos carvalhos que bloqueiam a vista do mar. Gostaria de saber onde vamos ficar. Dois homens, tensos como postes, estão de pé em frente à porta de metal do avião, preparados para baixá-la ao sinal do meu pai. Meu pai me entrega duas cordas; tomarei conta de Mishka e Mysh', e ele cuidará de Zaldia. Após o voo longo, e apesar de todos os sedativos naturais que demos antes de embarcar, os cavalos podem reagir de modo imprevisível ao pisarem em terra firme. Ao sinal do meu pai, os dois homens abrem a porta, que vira uma rampa até o chão. Subimos e seguimos em direção às baias acolchoadas, onde os cavalos esperam inquietos. Prendo as cordas nos cabrestos e guio Mishka e Mysh', os gêmeos “urso” e “rata”, para fora, cochichando palavras de incentivo. Eles usam olhos, orelhas e narinas para explorar o novo ambiente e,
Capítulo 1
então, não sentindo perigo algum, começam a pastar alegremente. Zaldia, contudo, requer mais atenção. Ele precisa da garantia do meu pai e de todas as palavras sussurradas na orelha dele antes de subir na plataforma. Todos os músculos estão tremendo, a cabeça dele virando de um lado para o outro, inspecionando cada detalhe com cuidado. Ver Mishka e Mysh' agindo calmamente o tranquiliza um pouco. Zaldia dá alguns passos no asfalto e segue para o brejo. Ele joga a crina longa e ondulada, revelando seu pescoço enorme. Sua pelagem, debaixo da qual fortes músculos se agitam, brilha no Sol, digna de um adorno real. Seu passo elegante enfatiza a nobreza da raça Andaluz, soberba e forte, porém frágil ao mesmo tempo.
— Sr. Tkachev, o avião precisa partir — interrompe um dos homens. — Precisamos mover os cavalos. Se puderem nos acompanhar, levaremos vocês até os estábulos.
Meu pai concorda e, segurando a corda de Zaldia, segue os dois homens, que ainda estão rígidos como tábuas. Vou atrás com Mishka e Mysh', seguindo o carrinho com as bagagens. Quando chegamos no bosque de carvalhos, ouço o barulho
Capítulo 1
metálico da porta da aeronave, que assusta os cavalos. Tranquilizo-os e olho para trás. O jato taxia pelo asfalto e faz um retorno, antes de pegar velocidade, com os motores rugindo. Ele vai em direção ao oceano, cada vez mais rápido, levantando voo majestosamente logo antes de alcançar a beira do penhasco. O piloto retrai as rodas, e a ave de metal voa em direção ao céu, desaparecendo do meu campo de visão em questão de segundos. Sinto meu peito apertar e respiro profundamente. Acabo de perceber que aterrissamos nessa terra desconhecida, e que agora não há volta. Espero que meu pai, sempre tão reservado e calado, e que só me contou que estávamos partindo momentos antes da viagem, tenha uma boa razão para fazer-nos deixar tudo para trás...
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Capítulo 2
Uau... Assim que passamos o bosque de carvalhos, fomos recebidos com uma vista que parece fora de lugar nessa terra selvagem. Um castelo neogótico, diz o mais velhos dos dois homens, à beira do penhasco, localizado sobre o topo das rochas e com vista para o oceano, com torres imponentes, como se desafiassem o céu, o mar e o vento. Há um enorme jardim francês na frente, perfeitamente cuidado, com rotundas cheias de flores e cantos reservados para encontros discretos, assim como um impressionante teatro ao ar livre para apresentações públicas. Um arrepio percorre a minha espinha. Que tipo de lorde moderno viveria em um castelo tão estranho?
— Os estábulos ficam ali — diz o mais jovem dos homens, apontando para a direção oposta ao castelo.
Afasto o meu olhar do castelo monumental e vejo uma praça, cercada por portões de ferro, com uma arena e uma escola de equitação no meio. Vastos cercados estendem-se até o final da praça, onde há vários estábulos rodeando uma selaria e um celeiro de madeira. Tudo parece tão limpo, polido e perfeito... mas não vejo nenhum sinal de cavalos por aqui!
Capítulo 2
Ao aproximar-me dos estábulos, percebo que a propriedade inteira é protegida por altas grades de ferro. É impossível que alguém a pé ou de carro entre. Ou saia... Começo a tremer, mesmo com o tempo ameno da primavera, tomado por um sentimento de isolamento e opressão, que não seria estranho na colônia penal de Krasnokamensk, na Sibéria. Estamos em uma prisão? Odeio sentir-me aprisionada quase tanto quanto odeio não ter direito de escolha. Por que meu pai, que é um cossaco orgulhoso e irredutível quase ao ponto de parecer-se com um muro de silêncio, não consegue conversar comigo? Por que não compartilha os pensamentos e planos? Por que não compartilha seus sentimentos? Como que minha mãe, que morreu durante o meu parto, aceitou alguém assim, frio como uma pedra de gelo? Estou furiosa. Segurei-me por muito tempo. Quero gritar, deixar este lugar imediatamente. Mas não tenho asas, não posso voar para longe e, se pulasse no oceano, sem dúvidas cairia nas pedras. E isso não me traria benefício algum. Não tenho escolha senão ficar quieta e fazer as vontades do meu pai, até que eu possa deixar o ninho...
Capítulo 2
Deixarei para trás o mundo do circo em que cresci, apesar da profunda afeição que tenho pelos meus tios Vassili e Irina, que são tão carinhosos e alegres quanto meu pai pode ser carrancudo. Após a morte da minha mãe, tia Irina convenceu o irmão dela a deixar o militarismo para juntar-se ao circo e cuidar de mim. Como o bom cossaco que era, dedicou-se aos cavalos e acabou conseguindo comunicar-se com eles. Ele aperfeiçoou seu talento como “encantador de cavalos”, tanto que sua reputação atraiu mais e mais donos de cavalos “difíceis”, os quais ele conseguia acalmar e treinar.
Eu aprendi a fazer malabarismo, andar na corda bamba, pular de um trapézio para o outro e saltar em cavalos galopando, enquanto o público aplaudia. Tudo isso graças a muito trabalho duro, disciplina e confiança em meus parceiros, principalmente nos nossos cavalos. Acho que se eu não fora tão feliz ao lado deles, nunca teria sido capaz de fazer o meu sorriso de palco brilhar tanto quanto a purpurina da minha fantasia...
Capítulo 2
Acaricio o topete de Mishka, que aproximou-se para afundar o nariz em meu pescoço, e sua irmã gêmea, Mysh', segue o exemplo imediatamente. Gravidez de gêmeos em éguas são incrivelmente raras, e, mutias vezes, apenas um potro sobrevive. Mysh' significa rata; ela nasceu tão pequena e frágil, que não sabíamos se ela seria forte o suficiente para sobreviver. Mas cresceu e ganhou peso, até que alcançar seu irmão Mishka, o urso. Os gêmeos competem entre si para me mordiscar e cheirar, e eu acabo rindo quando os dois me fazem cócegas, insistindo que eu os acaricie. Sinto um carinho repentino pela tia Irina, que disse que, com as crinas castanhas deles e minha cabeleira avermelhada, parecíamos esquilos brigando! Por fim, relaxo e abraço cada um dos meus companheiros. Não importa o que está por vir, contanto que eu os tenha ao meu lado. Tudo ficará bem, tenho certeza!
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Capítulo 3
Nossos cavalos estão nos cercados e, depois de guardarmos o equipamento que meu pai trouxe para dentro da selaria, subimos em um dos carros elétricos estacionados debaixo de um toldo.
— É muito fácil de dirigir — explica um dos homens, apertando um botão grande no painel para ligá-lo. — Esta alavanca tem três posições: para frente, parado e para trás. Vamos acompanhá-los no primeiro passeio, depois vocês estarão livres para ir aonde quiserem.
Estou muito impressionada com o quão silencioso o veículo elétrico é e com o silêncio dos nossos guias. Então, apesar da vontade de fazer mil perguntas, decido concentrar-me na jornada até o castelo, onde seremos apresentados aos nossos quartos.
Cruzamos vários hectares da zona rural, que é tudo menos urbana. Falésias altas e recortadas, pântanos resplandecentes, prados, matagais... até que chegamos no majestoso castelo de pedra branca-rosada. Construído de frente para o oceano, parece ser um edifício central com três alas, cada uma
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coroada por uma torre coberta de ardósia. Dirigimos em torno das três primeiras alas e paramos em frente à entrada do edifício principal, embaixo de uma arcada enfeitada com gárgulas e monstros assustadores. Resisto a um arrepio e volto meu olhar para o estacionamento cheio de carros parados em fileiras organizadas.
— Acompanhem-nos...
Subimos uma escada esculpida com a mesma pedra das paredes e chegamos ao salão principal de janelas altas que o inundam de luz solar.
— A capela fica à esquerda, a biblioteca do Sr. Hannibal e os aposentos ficam à frente, e a ala reservada para convidados fica à direita. Eu os levarei para os seus quartos e mostrarei onde descansar e comer.
Ah. Então somos os convidados de um tal de Sr. Hannibal. Nunca ouvi falar dele. Espero que, assim que estivermos acomodados, meu Pai me conte o que está acontecendo! Por enquanto, sigo-os por um corredor largo, olhando sobre os ombros para a imponente escada em espiral que leva aos aposentos, que ocupam três andares. A
Capítulo 3
cúpula de vidro reflete o balaústre e joga raios de luz em cada degrau, destacando os retratos de família pendurados nas paredes. É tão fascinante, que tenho dificuldade de me desprender deste espiral de luz e sombra. Nossos anfitriões abrem as portas em perfeita sincronia, e eu e meu pai entramos na área reservada para nós.
A primeira coisa que noto é que algumas roupas que coloquei com pressa em minha mochila já foram cuidadosamente dobradas ou penduradas nos cabides em um dos armários. Sinto-me enrubescer como um tomate e viro-me rapidamente para a janela. Estou extremamente envergonhada. Alguém dobrou e guardou até as minhas roupas íntimas! Abro bem as janelas para esconder a minha vergonha e sou saudada pelos gritos agradáveis de gaivotas sobre o barulho do mar. Debruço-me na janela. É maravilhoso. Meu quarto é erguido no vazio, com vista para o sol se pondo bem no final das ondas!
Acostumada apenas com o conforto das caravanas aconchegantes mas bregas do circo, pode ser que eu acabe gostando do luxo de dormir em um castelo!
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Capítulo 4
— Nadja?
Hmm... Quem está falando comigo a esta hora da manhã?
— Nadja, levante-se! O café da manhã está sendo servido no cômodo que fica na quarta porta à direita.
Droga, estava tendo um sonho tão bom... Chuto a colcha enrolada em mim como um casaco de pele e espreguiço-me. Dormi como um rocambole! Vou até a janela dizer bom dia para o oceano antes de colocar uma calça antiga e um casaco e sair descalça para encontrar meu pai.
Surpresa! Na sala de jantar, vejo um homem sentado à esquerda do meu pai, de costas para a luz que invade as janelas ao nosso redor. Ele podia ter me avisado! Estou toda desarrumada, e meu cabelo deve estar parecendo que fui atingida por um tornado!
— Ongi etorri Euskal Herria! Bem-vinda ao País Basco — traduz o nosso anfitrião.
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Que voz impressionante, tão séria e carismática... Eu reverencio desajeitadamente, inspirada por nossas apresentações de circo, o que faz com que nosso anfitrião ria completamente sem prazer.
— Por favor, sente-se, Bosikom Printsessa.
Tirando o fato de eu parecer como se tivesse sido arrastada para fora da cama e de ter sido chamada de “princesa descalça” pelo homem que presumo ser o Sr. Hannibal, poucas vezes fiquei tão envergonhada!
— Meu Deus, como você cresceu desde Moscow... — ele continua com um tom de nostalgia.
Enterro minha cara em uma enorme caneca de chocolate quente, que está perfeito, espumante e suave. Sinto os olhos de Hannibal me perfurando, como se estivesse tentando decifrar a minha alma... Como eu queria desaparecer para sempre! Não me lembro de tê-lo conhecido! Felizmente, meu pai chama a atenção dele:
— Está pronto?
Capítulo 4
Pronto? Pronto para o quê? Será que finalmente vão me contar por que meu pai nos trouxe para este castelo louco desse cara assustador? O que ele quer de nós?
Como ainda estou olhando para baixo, apenas ouço o som da cadeira movendo-se e o leve roçar de tecido. O som dos passos no chão de mármore me diz que Hannibal está saindo da sala. Algo me faz olhar para cima. O som dos sapatos dele no chão é levemente irregular. Entendo quando espio entre meu cabelo e olho as pernas de Hannibal enquanto ele caminha: ele manca levemente. Abaixo meu olhar de novo quando ele para e vira-se na porta.
— Vejo vocês no cercado em meia hora.
Cercado? Espero até que o som dos passos dele esteja longe o bastante para olhar brava para meu pai e dizer:
— Não vi nenhum cavalo nesse lugar a não ser os nossos! Logo não pode haver nenhum cavalo “difícil” que Sergei precise educar! Espero que você não tenha nos trazido aqui para vender nossos cavalos para ele!
Capítulo 4
— Não — meu pai responde bruscamente, levantando-se da mesa.
— Então por que estamos aqui? De onde você conhece este homem? Você vai me contar o que está acontecendo?
— Vamos ensiná-lo a andar a cavalo de novo. Apresse-se e arrume-se. Encontro você no estacionamento.
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Capítulo 5
Mal tenho tempo de escovar os dentes, amarrar meu cabelo e colocar meus tênis antes do carro chegar para levar-nos ao cercado. Nosso circo faz show todo ano em Moscou no Natal, mas não me lembro de ter visto Hannibal lá. Eu devia ser bem nova para ele se lembrar de mim, mas não eu dele. Há tantas perguntas passando pela minha cabeça. Por que Hannibal precisa de artistas de circo para “ensiná-lo mais uma vez” a andar a cavalo? Com todos os meios que ele tem à disposição, poderia contratar os melhores instrutores de equitação do mundo! Como pode ele ter “esquecido” como se anda de cavalo? Será que a manqueira dele é por causa de um acidente a cavalo? Um acidente terrível que o traumatizou?
E lá vamos nós. Minha cabeça está a mil por hora, e eu já estou imaginando dez mil explicações possíveis. Percebo sentir pena desse homem frio e medonho, sobre quem não sei nada a respeito. Pode ser que a equitação seja apenas o capricho de um bilionário entediado. Talvez ele mudará de ideia imediatamente e decidirá aprender a saltar de paraquedas ou a bordar! Balanço a cabeça e respiro fundo para
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livrar-me dessas ideias loucas. Se ao menos meu pai me explicasse as coisas, eu teria menos preocupações causando-me dor de cabeça!
Hannibal já está em frente ao cercado, ereto como uma vara, a uma boa distância da porteira. Ele está vestido com roupa de equitação, junto com chapéu, jaqueta, calça e botas, tudo novo. Faço cara de desgosto ao ver o chicote que ele está golpeando contra a coxa e as esporas brilhando nos saltos das botas. Se ele pretende montar em nossos cavalos, espero que meu pai o faça tirar tais acessórios. Caso contrário, prometo que eu mesmo o farei!
Estou surpresa que Mishka e Mysh' não estão amontoados em frente à porteira, implorando por um agrado ou um carinho na cabeça. Eles estão no fundo do cercado, atrás de Zaldia, que parece estar de guarda e mantendo-os em seus lugares, tão tenso quanto o próprio Hannibal. Somente quando vê eu e meu pai que Zaldia solta um relincho de reconhecimento e relaxa. Ele trota em nossa direção, rapidamente ultrapassado pelos gêmeos que vêm a galope, diminuindo a velocidade pouco antes de alcançar a cerca. Estou tão feliz em vê-los. Não
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consigo me conter. Passo por baixo da barreira e ando para saudá-los. Acaricio-os enquanto cheiram os meus bolsos à procura de cenouras, tão agitados quanto filhotes de cachorro. Acalmo-os e chamo Zaldia, mas percebo que ele está hesitante, observando Hannibal pelos cantos dos olhos, ainda cauteloso por causa desta pessoa desconhecida. Viro-me para meu pai, esperando instruções. Presumo que me jogará uma rédea e uma sela para começarmos nossa lição, mas ele caminha em direção à porteira, dizendo a Hannibal:
— Largue o chicote, tire as esporas e siga-me.
Que bom. Meu pai cumpriu a missão “livrar-se dos instrumentos de tortura.” Hannibal parece preocupado, como se um filme estivesse passando em sua cabeça, mas a voz do meu pai o tira desse sonho. Ele passa a mão no cabelo nervosamente, antes de obedecer e mover-se em direção à porteira. Após fechar a porteira do cercado, meu pai caminha lentamente em direção aos cavalos seguido por Hannibal, que está quase escondido atrás dele, como se estivesse usando-o como guarda-costas. Zaldia dá um passo para trás, baixando as orelhas e dando coices antes
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de trotar para o fundo co cercado. Mais calmos, os gêmeos avançam lentamente até meu pai.
— Estes são Mishka e Mysh' — ele diz para Hannibal, apontando para os gêmeos da esquerda e da direita, respectivamente.
Meu pai para e acena para eles. Em resposta, os gêmeos param em harmonia e ajoelham uma perna no chão, a forma deles de reverenciar durante os espetáculos.
Quero aplaudi-los, mas reparo que Hannibal está extremamente nervoso. Ele está incrivelmente pálido, com a mandíbula tensa, e suspeito que esteja lutando para controlar-se. Meu pai não lhe dá atenção alguma. Ele acaricia os pescoços dos cavalos antes de chamar Hannibal:
— Venha aqui.
Mas Hannibal está congelado feito uma estátua. Finalmente entendo que este homem tem medo de cavalos, um medo que o paralisa completamente. Gesticulo para meu pai e, depois de um tempo, ele acena. Caminho determinada em direção aos cavalos, pedindo a Mishka que se mova para o lado.
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Depois apoio-me no ombro de Mysh', pedindo que se deite de lado. Ela obedece graciosamente e eu me deito embaixo das pernas dela, contra a sua barriga. Chamo Mishka e ele fica na mesma posição, com as costas voltadas para mim.
— Muito bem, meus amores — agradeço-os.
Ficamos parados por um tempo, eu quase ficando com calor. Depois abraço o pescoço de Mishka e passo uma perna por cima das costas dele. Clicando com a língua, comando que ele se levante e passo minha outra perna sobre suas costas. Ele se levanta lentamente, e eu o aperto com meus calcanhares para fazê-lo andar, e então trotamos ao redor de Mysh', ainda deitada no chão. Depois pulamos sobre ela. Ela nem se mexe. Faço Mishka andar de novo, acaricio seu pescoço e desço de suas costas. Clico com a língua, e Mysh' se levanta. Faço carinho nela também, antes de virar-me para Hannibal, os gêmeos aos meus lados.
— Eles não lhe machucarão, senhor. Você pode se aproximar, eu prometo.
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Será que a minha demonstração serviu de algo? Será que o convencerá a dar um passo em direção aos cavalos?
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Capítulo 6
Após o que parece ser uma eternidade, Hannibal dá um passo em nossa direção, depois outro, mas para quando Mishka balança o pescoço para espantar uma mosca. Recordo-me da primeira vez que tive que me aproximar de um tigre no circo. Eu tinha cinco anos de idade, paralisada com a visão da mandíbula cheia de dentes bocejando na minha frente, mas meu tio sabia como lidar comigo. Ele fez carinho atrás das orelhas do tigre e fez com que deitasse para parecer menos imponente, antes de me chamar de novo:
— Venha, Nadja. Ele não vai te machucar! Diga para si mesma que ele é apenas um gato grande que quer carinho.
Superei meu medo e aproximei-me do tigre. Ajoelhei-me e acariciei-o gentilmente. Poucas semanas depois, eu estava montada no tigre, pulando círculos de fogo sem medo algum. Esta lembrança me faz sorrir, embora não possa dizer ao Hannibal que nossos cavalos são apenas gatos grandes que querem carinho. Mas, talvez, meu sorriso involuntário tenha sido o suficiente para fazer Hannibal dar mais alguns passos.
Capítulo 6
— Muito bem, agora estenda as mãos com as palmas para cima.
Os cavalos lentamente esticam os pescoços, as pontas dos narizes movem-se em direção às palmas esticadas de Hannibal, cheirando-as gentilmente antes de se levantarem.
— Você pode acariciar os pescoços deles se quiser. Eles não se moverão.
As mãos de Hannibal desabam. Um tique nervoso começa a tremer sua bochecha, mas o resto do corpo dele continua imóvel. De repente, ouço um zumbido fraco que parece tirar Hannibal de seu estado de transe. Ele puxa a manga da jaqueta e olha irritado para o pulso. Reparo um bracelete largo e dourado, decorado com pedras brilhantes. Seriam diamantes? Este tipo de vaidade é uma indicação clara de caráter! A face de Hannibal muda diante de nossos olhos. Ele franze as sobrancelhas, seus olhos apertados, e desvia o olhar. Então seu rosto relaxa e sua boca se abre em um sorriso largo. A metamorfose é tão perturbadora que eu sinto um arrepio. Os cavalos devem sentir meu desconforto, pois começam a se
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agitar. Rapidamente, coloco os braços sobre seus pescoços e os acalmo. Continuo observando Hannibal, que deu alguns passos para trás. Posso ver que está bastante animado ao dizer:
— Estou indo.
Ele bate com o dedo indicador no bracelete antes de virar-se para meu pai, seus olhos brilhando febrilmente.
— Há... uma emergência. Volto já. Sintam-se em casa, até eu voltar.
E, assim, ele livra-se de nós, saindo apressado em direção a um 4x4 que se aproxima em alta velocidade. Talvez este bracelete não tenha nada a ver com vaidade, mas na verdade seja algum tipo de aparelho de comunicação de alta tecnologia, como um relógio conectado à internet.
Meu pai acena com a cabeça, tirando-me desse transe.
— Sua demonstração foi uma ótima ideia, Nadja. Mas acho que ainda temos um longo caminho até que esse homem seja capaz de confiar em cavalos...
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— E vice-versa. — Não estou muito preocupada com Mishka e Mysh'. Eles são bondosos e, enquanto eu estiver com eles, tudo vai ficar bem. Já Zaldia, sinto que ele pode sentir as vibrações negativas vindo desse homem a um quilômetro de distância! — Você acha que esses dois vão se dar bem algum dia?
— Este é um desafio que eu decidi aceitar...
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Capítulo 7
Enquanto esperamos Hannibal voltar, o mais novo dos empregados dele, Filipe, oferece para levar-nos até o centro da cidade para fazermos compras, pagas pelo nosso anfitrião, é claro. Meu pai recusa o convite, preferindo ficar com os cavalos, mas eu aproveito a oportunidade para sair desta prisão. E tenho que admitir que ir às compras para mim mesma, em vez de acompanhar alguém apenas para ajudar a carregar quilos de comida para a equipe do circo, seria a primeira vez!
Também aproveito a oportunidade para interrogar Filipe durante o percurso.
— Há quanto tempo você trabalha para o Sr. Hannibal?
Percebo pela expressão confusa que ele não fala uma palavra de russo, então repito minha pergunta usando um inglês fingido. Ele responde em inglês, e o dele é ainda pior do que o meu.
— Um ano.
Não é muito fácil conversar mas, mesmo assim, consigo descobrir que o castelo estava
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vazio por muitos anos, e que Filipe e os outros homens foram contratados para dirigir para os trabalhadores e jardineiros que reformaram a propriedade. Mas quando tento obter informações pessoais sobre Hannibal, Filipe resmunga e acena com a mão dizendo que não sabe de nada, ou melhor, que não pode dizer nada. Frustrada, sento no banco e decido apreciar a paisagem.
A costa basca é tão linda! Respiro fundo o cheiro silvestre de grama e oceano pela janela aberta do carro, meu olhos repletos de cores e luzes novas. E isso me impede de olhar muito para Filipe, incrivelmente atencioso... Fico feliz por ele ter vindo comigo. O outro cara de nome impronunciável, Garbixo, é muito mais velho e muito menos... agradável aos olhos. Já chega! Não vou perder meu tempo babando pelos bíceps de Filipe, nem pelas coxas dele que contraem toda vez que passa a marcha, nem por seus cachos castanhos balançando ao vento, nem pelo seu perfil perfeito, nem... Mal posso esperar para chegar logo na cidade!
O engarrafamento e a multidão dessa cidade costeira quase me fazem sentir falta da minha calma e solitária prisão. Filipe percebe
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minha apreensão diante das centenas de lojas brilhantes beirando as ruas e, usando uma mistura de inglês, basco e um pouco de gestos, oferece-se para me levar a uma vizinhança mais calma. Agradecidamente, sigo-o pelo zigue-zague das ruas do antigo bairro, até que alcançamos uma praça pavimentada sob a sombra de amoreiras.
Ele entra em uma loja tranquila, conversa em basco com a gerente, Galéria, e deixa-me com ela, encorajando com a cabeça. Esta mulher muito gentil observa-me da cabeça aos pés, antes de convidar-me para olhar as prateleiras. Vejo um vestido azul-safira decotado, feito com um tecido leve e macio. Pego-o e coloco-o em minha frente, diante de um espelho. Estou... é lindo... com exceção dos tênis e da minha calça jeans desgastada. Nada elegante. Rapidamente, coloco o vestido de volta na prateleira, sentindo minhas bochechas arderem como uma brasa. Eu jamais ousaria vestir tal roupa. Olho as camisetas e escolho uma cinza e uma preta. Eu poderia alternas estas com as duas ou três que trouxe comigo. Então Galéria volta, seus braços cheios de roupas em cabides, que ela coloca na arara, antes de me chamar.
Capítulo 7
Há caixas por todo o chão, cheias de sapatos abertos, sapatilhas, sandálias e saltos altos, todos de cores diferentes. É o suficiente para deixar qualquer um tonto! Eu faço como Galéria pede e me aproximo, passando as mãos pelos cabides, sem conseguir escolher dentre todas as roupas que são muito femininas para mim! Balanço a cabeça e entrego-lhe as duas camisetas que seguro contra meu peito. Coloco a mão no bolso e tiro dinheiro, mas ela balança a cabeça, vigorosamente. Ela suspira um sorriso, antes de colocar as camisetas em uma bolsa e entregá-la para mim. Sinto-me tão envergonhada ao sair da loja!
Sinto-me completamente perdida. Filipe está me esperando do lado de fora. Ele gentilmente pega a bolsa plástica da minha mão e entrega-me uma de papel.
— Serrejas? Cerejas?
A bolsa está transbordando de cerejas brilhantes e vermelhas. Elas parecem perfeitamente maduras e, normalmente, eu as devoraria. Mas sinto-me completamente nervosa e balanço a cabeça dizendo que não.
Capítulo 7
Posso sentir a frustração dele. Sou incapaz de olhar Filipe nos olhos ou de dizer alguma coisa, enquanto andamos de volta para o carro. E, então, finjo estar dormindo durante toda a viagem de volta. Deus, eu não tenho salvação!
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Capítulo 8
Hã? Eu peguei no sono? Já voltamos para o castelo? A porta do motorista está aberta e Filipe desapareceu. Esfrego os olhos, levanto-me e vejo uma mesinha embaixo de um guarda-sol na varanda. Olho à minha volta, mas não vejo ninguém. Caminho até a mesa. Prepararam uma refeição leve para mim. Onde será que meu pai está? Enquanto espero, sirvo-me de um copo d'água grande e, como não há ninguém por perto para dizer o que fazer, belisco os queijos e frutos deliciosos à minha frente. Sentindo-me melhor, decido ir ver os cavalos. Estou com saudade deles!
Devo ter perdido alguma coisa, pois o que encontro me deixa completamente confusa. Hannibal já voltou e está montado em Mishka sem sela! E ele está descalço, vestindo nada além de uma camisa polo e calça de montaria. Sem acreditar, ando em direção ao cercado, mas meu pai gesticula para eu ir embora. Estou atrapalhando? Movo-me silenciosamente, observando Hannibal. Ele está sentado reto, com as mãos agarradas na crina de Mishka, que está tão imóvel quanto seu cavaleiro. Hannibal olha fixamente para o horizonte, seu peito aumentando e diminuindo de uma
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forma que deixa evidente que está se esforçando para respirar lentamente. Meu pai está falando suavemente. Não sei o que ele está falando, mas posso ver que Hannibal está acenando positivamente com a cabeça. Mishka começa a andar lentamente. A mão do cavaleiro puxa violentamente a sua crina como se fosse uma rédea, mas o sereno Mishka não parece irritado e continua a andar em círculos ao redor do meu pai. Pouco a pouco, o corpo de Hannibal relaxa. Ele abaixa as mãos e relaxa a pelve, começando a movimentar-se com o cavalo, e não contra ele. Depois de um tempo, meu pai pede que Mishka se vire e ande na direção contrária. As pernas de Hannibal estão tensas novamente, as mãos e calcanhares dele começam a levantar. Confortado pelos movimentos regulares do cavalo e pelo conselho do meu pai, ele começa a relaxar. Meu pai o parabeniza, mas não é suficiente para ele. Ele pede que Hannibal largue a crina e coloque as mãos na cabeça. Ele insiste até Hannibal ceder e, quando o cavaleiro finalmente coloca as mãos na cabeça e percebe que o cavalo não reage e continua a andar obediente, o medo em seu rosto dá lugar a um sorriso um tanto agradável. Depois de um tempo, meu pai pede que ele faça outra coisa. Isto claramente não agrada Hannibal, que abaixa os braços e balança a cabeça.
Capítulo 8
Meu pai para Mishka e anda na direção dele. Ele tem uma breve conversa com Hannibal, que finalmente cede. Com meu pai segurando uma de suas pernas, ele abaixa o peito para frente, com um olhar de desconfiança e quase de ódio em seu rosto, e abraça o pescoço do cavalo. Mishka, como o bom garoto que é, permite, e eu percebo as costas de Hannibal relaxando levemente. Então meu pai pede que Mishka comece a andar novamente, dando alguns passos ao seu lado antes de largar lentamente a perna de Hannibal. Hannibal fica paralisado no início, depois começa a acostumar-se e finalmente permite que o cavalo ande com ele em suas costas sem hesitar. Mas, intencionalmente deixado sem instruções, Mishka, como todo bom cavalo, decide começar a pastar, movendo-se de um tufo de grama para o outro. Hannibal não ousa se mexer até que meu pai começa a rir, dizendo para Hannibal que ele pode acordar e até descer do cavalo se quiser.
Eu saio quietamente, ouvindo partes da conversa. As palavras firme, respiração, confiança, persistência, objetivo e Zaldia são mencionadas frequentemente. Se o objetivo for fazer Hannibal cavalgar
Capítulo 8
e de fato domar um cavalo como Zaldia, ele precisará baixar a guarda...
Olho ao redor procurando Mysh' e Zaldia. Eles estão em seus cercados, o mais longe possível de Mishka. Acho que meu pai deve tê-los mantido longe para que não atrapalhassem a nova parceria entre Mishka e Hannibal. Ambos estão pastando calmamente e parece que Zaldia está começando a se acostumar com o ambiente. Isto me deixa muito feliz. Ele está esticando o seu pescoço forte, farejando a maresia, balançando a crina. Observo os músculos dele tremerem, enquanto dá alguns passos em direção ao oceano. Ele é uma mistura de força e graça. Ele é magnífico. Quem reconheceria o garanhão selvagem, ferido e debilitado que adotamos há alguns anos e que costumava ser tão violento?
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Capítulo 9
Nós estávamos em turnê, fazendo um show de circo na Sibéria Ocidental. Disseram-nos que, nos estepes de Kulunda, entre o rio Irtich e o Cazaquistão, havia uma fazenda de criação de cavalos espanhóis puro-sangue. Tio Vassili conseguiu convencer meu pai a comprar novos cavalos para tornar os shows equestres ainda mais espetaculares. Eles escolheram o elegante Andaluz, de porte orgulhoso e talento natural para galope e passeio. Sua boca delicada significa que se tornarão cavalos finos e obedientes, quando amansados e montados corretamente. Também são muito usados em filmes, pois sua atitude e bom temperamento são muito prezados. Eles são confiáveis e valentes, sempre com temperamento agradável e, quando pegam gosto, adoram se exibir pelo picadeiro, para a alegria do público.
Então chegamos à fazenda de criação, onde o dono, um homem chamado Vania de cabelo longo e oleoso e expressão desonesta, ofereceu-nos um lote de quatro potros por um preço justo. Eles estavam alinhados em estábulos estreitos, em um galpão de metal escuro. Meu pai recuara ao ver o quão magros e debilitados estavam e estava prestes a
Capítulo 9
ir embora, quando tio Vassili, sempre diplomata, pediu para vê-los andando na luz do dia.
Meu pai, franzindo a testa, balançou a cabeça enquanto os observa caminhar, desajeitados, enfraquecidos e assustados. Vania puxando-os pelas cordas, zombando rudemente. Ele resmungou “nyet” para meu tio e virou-se para ir embora, quando ouvimos um estrondo terrível vindo do fundo do galpão. Relinchos furiosos acompanhados de golpes nas placas de metal faziam a construção inteira estremecer. Vania, parecendo completamente irritado, entregou as cordas para Vassili antes de correr para o fundo do galpão.
— Zaldia, seu cavalo desgraçado! Eu vou te ensinar uma coisa!
Meu pai o seguiu, e eu corri atrás o mais rápido que minhas perninhas conseguiam. Vania pegara um chicote e estava golpeando o garanhão sem piedade, que se debatia em uma baia, coiceando as paredes de metal e lutando contra as cordas que o faziam prisoneiro. O pobre do cavalo estava coberto de cortes e marcas de sangue, olhos brancos de fúria, salivando pelos cantos da boca. Meu pai jogou-se em cima
Capítulo 9
de Vania e arrancou-lhe o chicote das mãos, antes de socá-lo no rosto. O homem, atordoado e caído no chão, esfregou o nariz e perguntou:
— Mas... como diabos vou vender este animal se eu não conseguir domá-lo?
Meu pai levantou o chicote, pronto para punir com o mesmo castigo que Vania submetera o pobre garanhão, mas eu grito:
— Não! Para, para, por favor!
Meu pai me olhou como seu eu fosse uma alienígena, seu rosto vermelho como uma beterraba e tão louco de raiva quanto o cavalo maltratado. Depois do que pareceu uma eternidade, ele largou o chicote e esfregou o rosto, como se estivesse tentando se livrar do resto de raiva que o dominara. Então ele tirou um rolo de notas amarradas com um elástico do bolso e jogou-o em Vania, que ergueu as mãos para proteger o rosto, com medo de mais golpes.
— Eu fico com os potros e o garanhão pelo mesmo preço. Peça a Deus que nossos caminhos nunca se cruzem de novo.
Capítulo 9
Eu sempre senti uma mistura de medo e respeito pelo meu pai. Comecei a amá-lo quando vi que ele era capaz de sentir empatia pelos cavalos, quando vi que tinha uma paciência infinita para cuidar deles e, mais importante, ganhar a confiança deles.
Não foi fácil colocar os cavalos dentro do trailer na fazenda. Os potros, depois de terem bebido água e graças a uma mistura de palavras suaves, cenouras e carinho, finalmente subiram a rampa para dentro do trailer. Tudo o que restava era persuadir Zaldia a entrar também.
Apesar de ter criado tigres desde filhotes, tio Vassili ficou chocado com a fúria de Zaldia e me manteve longe do estábulo.
— Levar este animal é um erro, Sergei. Ele é uma fera selvagem, impossível de domar. Ele vai nos matar antes de conseguirmos chegar perto dele.
O garanhão, preso por cordas, nos observava pelo canto do olho, seu corpo tremendo de nervoso e seus músculos tensos como um arco puxado.
Capítulo 9
— Não posso deixá-lo aqui — disse meu pai.
Então ele caminhou até o garanhão, lentamente mas determinado, com as palmas abertas, falando bem baixinho:
— Eu não vou te machucar, Andaluz. Deixe-me tirar essas cordas.
Ele continuou murmurando palavras de conforto, a música de sua voz hipnotizando-me como quando meu primo Igor toca o hang. É um instrumento de percussão circular de metal com um cume no centro e cinco reentrâncias em volta, como marcas de mão. Não é nada como a bateria que se toca com baquetas. Quando Igor faz os dedos dele dançarem no instrumento, apoiado em suas coxas, batendo com as mãos como um gato, as vibrações e os sons misturam-se para criar uma melodia melancólica. Quando Igor toca o hang perto da lareira à noite, ele agita um redemoinho de sonhos, rodando com as viagens da imaginação. Você fecha os olhos e imagens alegres ou nostálgicas começam a se formar atrás das pálpebras, sua mente viaja para as ondas dos mares de águas quentes ou voa nas asas macias
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das aves. Os tigres rosnam suavemente, ecoando esta voz das profundezas do tempo, do ventre secreto da Terra.
É esta a voz que Zaldia está ouvindo? Tremendo e alerta, ele observa meu pai se aproximando, suas orelhas dançando um balé ansioso, suas narinas agitadas. Mas, quando acha que o humano chegou perto demais, ele deixa bem claro, expondo os dentes com as orelhas abaixadas. Ele fica agitado e, a cada passo, tenta escapar das cordas que o seguram, cortando-se com o cabresto de couro apertado em sua fronte e nas laterais de seu rosto, arranhando sua cabeça e garganta. Meu pai para e mantem-se imóvel por um longo tempo, mas continua falando. Então ele tira um facão do cinto, segurando-o na direção do cavalo, que começa a bater os pés nervoso, golpeando as paredes de metal com seu flanco de novo. O tom da voz do meu pai muda levemente, tornando-se mais áspero. Não posso ouvir as palavras, mas observo enquanto o garanhão tenta se virar e ficar de frente para ele. Ele para de bater contra as paredes e finalmente fica quieto. Meu pai continua a se aproximar lentamente. Então, com um movimento rápido e preciso, ele corta a corda amarrada no flanco do cavalo. Ele anda
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para trás rapidamente quando o cavalo começa a se agitar, coiceando e pulando como uma ovelha por não poder empinar e fugir. Meu pai espera até que o cavalo se acalme, enquanto continua a pronunciar palavras reconfortantes. Logo, o peito de Zaldia, movendo-se como uma sanfona, começa a diminuir o ritmo, suas pernas batem na forragem suja, incerto de sua liberdade parcial. Ele força as cordas da cabeça, mas logo percebe que não conseguirá se livrar delas sozinho. Então olha para o humano por um longo tempo, antes de andar para o lado para dar-lhe espaço para entrar. Meu pai entra e caminha para o lado do cavalo, evitando qualquer contato, depois corta as cordas restantes antes de recuar para o canto da baia. Zaldia, finalmente livre, balança a cabeça e solta um longo relincho, antes de empinar-se diante do meu pai. Meu coração dispara. Sinto a mão do tio Vassili apertar meu ombro. Será que a sua previsão está prestes a se tornar realidade? O garanhão esmagará meu pai para puni-lo por ser um humano?
Zaldia permanece empinado pelo o que parece uma eternidade, antes de baixar-se nos quatro cascos e, enfim, deixar a sua prisão de metal. Embriagado pela
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recém-conquistada liberdade, ele galopa em velocidade máxima, dando voltas, alternando entre coices e empinadas antes de sair correndo pelo estepe e desaparecer pelo canto da montanha. Olho para meu pai, um sorriso rasteiro em seu rosto, com os olhos seguindo um vulto ao longo. É como se ele tivesse se transformado. E, então, com um gesto discreto, ele enxuga os olhos.
Vassili acaricia minha cabeça. Olho para ele, seu rosto é uma imagem de alegria misturada com alívio. Para meu pai, libertar este cavalo maltratado foi como se estivesse acabando com todos os problemas do mundo, compensando todas as perdas, trazendo de volta à vida o desejo e a esperança.
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Capítulo 10
A viagem de volta pelas estradas esburacadas no vazio Kulunda Steppe, com os quatros potros no trailer, ocorreu em silêncio, nenhum de nós querendo quebrar o momento emocional que foi libertar Zaldia. De vez em quando, os potros, cujas narinas estavam para fora farejando o vento, comentavam sobre a paisagem à sua maneira, relinchando de surpresa aos novos cheiros, o murmurinho do vento pelos pés de trigo que brotam na terra escura, chamando os falcões planando pelos ares, e os antílopes correndo pelas castanheiras, agora exibindo suas pelagens de verão. Então, repentinamente, eles começaram a relinchar alto e juntos. Guinchos repetitivos, como se tivessem visto um lindo pasto ou reconhecido um companheiro de estábulo. Tio Vassili olhou pelo retrovisor instintivamente, e eu observei o rosto dele ser tomado por uma grande surpresa. Ele diminuiu a velocidade e estacionou no acostamento, olhando para meu pai, que cochilava e não entendia por que a van parara.
— Sai, Sergei! Temos visita!
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Confuso, meu pai esfregou o rosto para acordar e abriu a porta, resmungando. Ele parou de protestar assim que viu quem nossa visita era. Era Zaldia! Ele deve ter nos seguido. Será que ele era o líder da manada e queria proteger os potros, ou só precisava de companhia?
— Nadja, pegue o saco de cenouras e venha aqui — ele sussurrou.
Zaldia escondera-se atrás das árvores, observando nossos movimentos. Meu pai pegou uma cenoura grande e caminhou até as castanheiras, parando a uma distância segura do garanhão. Ele ofereceu a cenoura para o cavalo, chamando-o com uma voz tranquilizadora. Com os lábios retraídos e narinas alargadas, o garanhão farejou a cenoura. Ele bufou curioso, batendo o casco atrás das árvores, ainda incerto se saía ou não de trás delas. Os potros na van ficaram agitados, chamando o amigo com uma fanfarra de relinchos de alegria, mas Zaldia continuou recuado. Então meu pai colocou a cenoura que estava segurando no chão e deu alguns passos para trás, enquanto continuava chamando o garanhão, com os braços ao seu lado e as palmas
Capítulo 10
voltadas para ele. Após hesitar por um momento, Zaldia saiu de trás das árvores, dançando de um lado para o outro até se aproximar, pegar a cenoura do chão e voltar a refugiar-se atrás das árvores. Meu pai pegou outra cenoura do saco que eu estava carregando e deu alguns passos adiante. O saco estava muito pesado, portanto decidi colocá-lo no chão e sentar-me ao lado dele. Meu pai continuou falando com Zaldia, tentando trazê-lo mais para perto. O cavalo dançou, hesitou, veio pegar a metade da cenoura da mão do meu pai e, então, deu um passo para trás e dançou de novo. Após devorar a segunda metade da cenoura, ele trotou em minha direção. Bem, em direção ao saco de cenouras aberto ao meu lado.
— Não faça movimentos bruscos, Nadja — meu pai me disse, com um toque de preocupação em sua voz.
Não mexi um músculo, deixando Zaldia aproximar-se do saco, dançar e comer todas as cenouras suculentas que quisesse. Seria por que eu tinha apenas a metade do tamanho de um adulto que ele só sentia medo de mim pela metade? Seja lá o que tenha sido, eu não tive medo; senti apenas compaixão por este pobre
Capítulo 10
cavalo com ferimentos abertos. Sussurrei suavemente para ele e, apesar do risco de assustá-lo, estiquei minha mão e acariciei a parte do seu pescoço que não estava ferida. Ele tremeu mas não se afastou.
Um barulho fino repentino nos fez pular e, por um segundo, temi que Zaldia fugisse. Ele deu um passo para trás, em alerta. Tio Vassili abrira a porta e estava falando com meu pai.
— Bem devagar, ande em direção ao trailer com o saco — disse meu pai.
Levantei-me devagar, sentindo Zaldia tremer de ansiedade, mas sem fugir. Caminhei de volta para o trailer, instintivamente deixando cair uma cenoura após a outra atrás de mim, como João e Maria e as migalhas de pão. Zaldia relinchou de frustração, recusando-se a me seguir. Foi só quando voltei para o carro e começamos a dirigir a uma baixa velocidade que Zaldia decidiu comer as cenouras. Acompanhado pelos sons encorajadores dos potros, ele nos seguiu de volta até o acampamento e juntou-se aos outros cavalos no cercado. E foi assim que conseguimos um garanhão e quatro potros, que tiveram que aprender tudo do início, a começar pelo amor...
Capítulo 10
Meu pai dedicou muito tempo e energia criando Zaldia, conversando com ele, treinando-o aos poucos, ganhando confiança e respeito. Acho que, às vezes, senti ciumes do tempo que meu pai passou com ele à minha custa. O vínculo deles era tão forte que havia pouco espaço para outros. Quando caminham lado a lado, ombros impecavelmente retos, vejo um casal perfeito. Conhecem-se tão bem que podem se comunicar sem palavras. Às vezes, pergunto-me se não foi Zaldia que curou meu pai, alguns anos após a morte da minha mãe. Apesar de ser um garanhão, papel que ganhou como rei incontestável dos cavalos do circo, ele era de certa forma leal ao meu pai. Ninguém acreditava que Zaldia obedeceria a outro ser humano. Ele tinha tantas razões para odiá-los.
Tive um pouco de consolo pela distância que meu pai colocou entre nós quando estava tomando conta de Zaldia, pois fez com que eu, repentinamente, estivesse responsável pelo treinamento dos novos potros! Eles eram tão doces, dóceis e brincalhões, e aprendiam tão rápido que não demorou muito para termos treinado alguns que encantavam o nosso público. Zaldia
Capítulo 10
observava-nos atentamente quando ensaiávamos do lado de fora, aprendendo à distância sobre o relacionamento que ele poderia construir com os humanos. Até o dia em que, para a surpresa de meu pai, ele pulou o cercado e juntou-se a nós!
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Capítulo 11
Não tenho a menor vontade de levantar. Hannibal está progredindo. Ele parece confortável em todas as velocidades, apesar de claramente preferir montar com sela em Mishka e Mysh' do que sem uma. Não tenho utilidade alguma, visto que ele só treina com meu pai. E ele está de mau humor há dois dias, desde que encontramos Hannibal na arena de manhã cedo, montado em Mysh', com sela e rédea, chicoteando-a como um louco para fazê-la obedecer.
— Eu te proíbo de bater em meus cavalos! Você não aprendeu nada? — gritou meu pai, correndo na direção dele e tirando o chicote de sua mão, forçando-o a descer. — Você nunca vai conseguir fazer um cavalo te obedecer usando violência. Vou embora imediatamente e vou levar meus cavalos comigo!
Eu não presenciei o resto da discussão, já que corri para tirar Mysh' da arena e levá-la para longe deste homem horrível. Mas Hannibal deve ter encontrado um jeito de mudar a cabeça de meu pai, pois ainda estamos presos nesse maldito castelo. Ele deveria montar em Zaldia hoje, mas acho que terá que ser adiado devido
Capítulo 11
ao mau tempo que acaba de nos atingir. O céu se esqueceu de ser azul, alternando entre tons tristes de cinza e preto, as árvores se dobram com a força do vento, e a chuva inunda tudo, começando pela minha disposição.
Por fim, desisto e saio debaixo do cobertor para esticar as pernas. Queria andar no sol perto do penhasco, mas terei que adiar meus planos... Então aproveitarei esta oportunidade para explorar o interior do castelo. Acho que um dos empregados, aquele com nome impronunciável, falou de uma biblioteca. Já que estamos sempre na estrada, raramente temos a oportunidade de pegar livros emprestados. E, além de livros escolares velhos e desgastados por gerações de crianças de circo, eu nunca li muito! Vou em direção ao corredor da entrada sem encontrar uma única alma. Pergunto:
— Hmm... Tem alguém aí?
A única resposta que ouço é a da minha voz ecoando de volta para mim. Bem, deixa pra lá. Hesito por um tempo, antes de subir a escada em espiral. Desta vez, a luz passando pelo vidro não reflete raios por toda a parte. Sua luz cinzenta e
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lilás atenua os retratos da família, os olhos dos falecidos me seguindo como fantasmas. Estou começando a me arrepender por estar me intrometendo no mundo de Hannibal. Percebo que quanto mais subo, mais modernas são as roupas nos retratos. O que é isso? A coleção de retratos para de repente. Observo a última pintura. É de uma família de quatro pessoas, usando roupas dos anos 1970 ou 1980, eu acho. Todos estão sorrindo, exceto um menino de cabelo castanho, que tem seis ou sete anos de idade. Olho mais de perto o rosto dele. Parece com Hannibal. Talvez seja porque a imagem tenha envelhecido, mas parece que ele tem olhos coloridos, um azul e um castanho. Achei que os dois olhos dele fossem azuis... A expressão no rosto dele me incomoda, então olho para o menino mais novo de cabelo claro posando orgulhoso ao lado dele. Será que é o irmão mais novo? Por que a coleção de retratos para repentinamente?
Sabendo que não conseguirei resposta alguma para tais perguntas, continuo subindo até chegar no topo da escada. Posso ouvir o barulho constante da chuva batendo no vidro. As nuvens movem-se furiosamente, formando sombras nas paredes e no chão impecavelmente encerado.
Capítulo 11
Fecho os olhos por um momento e respiro o aroma de cera, madeira e couro. Quando me concentro, acho que consigo reconhecer o cheiro de papel, como nossos livros antigos. Sorrio e abro os olhos: Entrei no reino dos livros!
As paredes são cobertas de livros em estantes de quatro a cinco metros de altura. Existe um trilho estreito no final das estantes e outro no topo, permitindo que uma escada de madeira deslize por eles. Com os dedos tremendo levemente, empurro a escada para o lado. Ela corre perfeitamente, sem fazer nenhum barulho. Tremo de animação e subo os degraus, um a um, saboreando a progressão das letras douradas gravadas nas lombadas de couro dos livros, como um filme avançando rapidamente. Eu levaria uma vida inteira para ler todas as obras desta biblioteca! Chego no topo da escada e olho ao meu redor para estes tesouros de papel. Não me sinto como a dona do mundo, mas como a capitã de um navio, em pé na popa e observando minha carga preciosa: o conhecimento universal!
Gentilmente, pego um dos livros e afundo meu nariz nas páginas, o doce cheiro me intoxicando. Se pudesse parar o tempo, eu me trancaria
Capítulo 11
aqui e devoraria todos estes livros, um a um, do chão ao topo, ou talvez deixaria ao acaso e veria quais me chamariam! Um barulho repentino tira-me dessa fantasia e quase caio da escada. Alguém acabou de fechar a porta da frente! Rapidamente coloco o livro em seu lugar e desço da escada, tentando não fazer barulho. Encolho-me no canto da biblioteca, agachando contra o pé da estante como uma garotinha esperando levar uma bronca, ouvindo os passos se aproximando.
Reconheço a voz do empregado mais velho falando sozinho. Não, ele deve estar falando com alguém no telefone, a julgar pelos silêncios na conversa.
— Claro, Sr. Hannibal... Istambul, imediatamente. Sim, senhor, cuidarei disso... Amanhã, às dez da manhã...
A voz se distancia, as portas abrem e fecham, e o silêncio reina mais uma vez. Ufa! Aliviada, apoio-me na estante. De repente, o chão afunda e eu caio de costas na escuridão. Socorro!
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Capítulo 12
Turquia - Zacharias
Eu combinara de encontrar meu velho amigo Yilmaz no Kapalıçarşı, o Grande Mercado de Istambul, o maior mercado coberto do mundo. Fiz alguns negócios com ele, vendi-lhe oferendas dos fiéis ortodoxos que vieram ao mosteiro para trocar algo inútil pela promessa de um pedacinho do paraíso. Por vezes, havia tesouros de grande valor no meio do lixo. Apenas um olhar experiente poderia reconhecê-los, e Yilmaz era quem oferecia o melhor preço. Apesar de sua maneira e discrição, será que posso mesmo chamar alguém de amigo quando nosso relacionamento resume-se a um benefício mútuo? Ainda assim, ele é uma das poucas pessoas que posso pedir para realizar um serviço com completa discrição, como receber um estranho, cuja identidade eu tomei cuidado para não revelar, em seu quarto dos fundos.
Marquei o horário do encontro para alguns minutos antes do mercado fechar às sete horas. Ele chegará na hora. Ele não é do tipo de pessoa que se perde no labirinto de corredores, passagens, pátios, nas cinquenta e oito ruas embaixo
Capítulo 12
da série de arcos com azulejos azuis, vermelhos e verdes, que contêm mais de quatro mil lojas. Ele, Hannibal, ignorará o grito dos comerciantes de tapetes e saberá como ir direto para o “Mercado Antigo”, o mais velho e principal caravançará, que fica no centro de todos esses corredores. No negócio de antiguidades, Yilmaz é conhecido como o Lobo Branco. Ele abre a cortina adamascada que esconde o quarto dos fundos e o alojamento dele dos olhos e do tumulto da multidão. Ele acena para o visitante e o direciona para a alcova confortável, onde eu o espero.
Eu ensaiei o encontro várias vezes. Não vou tentar me desculpar. Não vou deixar minha voz tremer. Não o reverenciarei. O passado é passado. No aqui e agora, somos iguais nos olhos do deus dos negócios. Mas, quando o homem senta à minha frente, colocando uma pasta de couro muito maior do que a que eu deveria entregar para Leyla na mesa, sinto meu estômago revirar e engulo seco involuntariamente. Ele é daquele tipo de pessoa que pode fazer os mais fracos obedecerem com apenas sua presença. Uma daquelas pessoas cujos olhos nos julgam como uma guilhotina. Desvio o olhar e entrego-lhe o pergaminho contendo o
Capítulo 12
testamento do soldado grego, com o desenho do fragmento da Estrela de Zeus. Ele desenrola o pergaminho cuidadosamente e examina-o sem demonstrar nenhuma emoção. Depois ele o enrola de novo, antes de me fuzilar com o olhar.
— Então, Zacharias, este documento não lhe revelou o local do Templo de Zeus, cujos sacerdotes foram encarregados com o fragmento da estrela?
— Não.
Mas eu tentei refazer a rota do soldado, procurando nos arquivos das descobertas arqueológicas persas e helenísticas, inspecionando os mapas topográficos dos hindus, persas e gregos mais antigos do mundo. Mas percebi que eu não teria sucesso dentro de um tempo razoável. Pelo menos não sozinho e sem saber os detalhes deste caso da Estrela de Zeus. Então decidi vender para Hannibal o documento que poderia levá-lo até o fragmento da estrela, renunciando um lucro que seria ainda maior, mas muito mais incerto.
Hannibal balança a cabeça diante da minha resposta negativa, antes de levantar-se e colocar o pergaminho dentro do bolso interno da jaqueta.
Capítulo 12
— Então você não me é mais útil — ele diz, apontando-me uma arma equipada com silenciador. — Eu pouparia a sua vida se você não tivesse me traído da primeira vez.
Ouço um assobio abafado e sinto uma dor excruciante no meu peito. Vejo a imagem de Hannibal desaparecer atrás da cortina e o escuto sussurrar:
— Fique com o dinheiro para arcar com a despesas da limpeza, Yilmaz, meu amigo.
E, quando percebo que estou agonizando em uma poça do meu próprio sangue, sozinho nesta alcova que meu “amigo” me emprestou, depois de cometer o erro de acreditar que Hannibal e eu éramos iguais perante os negócios, apelo para o que resta da minha força para pegar meu celular. Deslizo os dedos, cada vez mais rígidos, sobre a tela, seleciono a foto que tirei do pergaminho para que eu pudesse continuar estudando em segredo, e mando para a última pessoa que achei que gostaria de ter como aliada: Leyla, a egípcia. Com meu último ato concluído, o telefone cai dos meus dedos dormentes e, enquanto perco a
Capítulo 12
consciência, sinto-me sorrir dos demônios que vieram me levar. Hannibal, você vai se arrepender disso...
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Capítulo 13
Egito - Leyla
— Então, habibti, você e John já marcaram a data do casamento? Ai!
Puxei um pouco mais forte a tira de cera presa na coxa da sra. Arfaoui. Bem feito para ela! Desde que minha tia Wadiha deixou escapar informações sobre meu namorado, as clientes no salão de beleza Doce Beijo têm ficado em cima de mim como moscas no mel. Elas não têm mais ninguém para incomodar? Além do mais, casamento está fora de cogitação. John ainda nem me apresentou aos pais dele... Bem, eles vivem em Seattle, meio longe do Cairo, mas não é desculpa e eu nunca viveria na cidade mais chuvosa dos EUA e, mesmo assim... Droga, deixei meu celular ligado no avental.
— Com licença um instante, sra. Arfaoui, volto já.
— Ah, o amor não pode esperar! Mua ha ha ha ha!
Vou depilar cada pelinho dela, inclusive os da cabeça. Não, farei que ela coma o pote de cera para ver se
Capítulo 13
cala a boca! Corro para o cômodo dos fundos para verificar a mensagem que acabei de receber.
Quando vejo do que se trata, quase tenho um ataque cardíaco e sinto minhas pernas tremerem. A mensagem diz: — Vingue-me e encontre-o antes dele.
Abro o anexo. Aproximo o documento que Irmão Zacharias, capacho de Hannial, enviou, horrorizada ao reconhecer o desenho do fragmento da estrela de Alexandre, o Grande, um pedaço que eu ainda não tinha visto. Se Hannibal o encontrar, ou se já o tiver, ele terá quatro dos cinco fragmentos da estrela! Calma, Leyla, não entre em pânico. Tento me recompor e envio o documento para os membros da rede, solicitando uma videoconferência urgentemente. Então tento ligar para o Irmão Zacharias para entender como ele conseguiu este documento e por que ele o mandou para mim, mas o telefone toca e ninguém atende... não tem nem secretária eletrônica. Isto não me parece bom. Pois bem. Tiro o avental, coloco minha calça e meu tênis, pego meu capacete e digo para tia Wadiha que preciso ir, sem hora para voltar. Os pelos grossos da perna da sra. Arfaoui terão que se virar sem mim!
Capítulo 13
Estou furiosa com o tempo que levo para chegar na Universidade de moto, devido ao trânsito louco que está bloqueando as ruas do Cairo. Finalmente no laboratório de informática, corro para o canto no fundo onde há um computador desocupado. Conecto-me à nossa rede, coloco um fone de ouvido com microfone e preparo-me para as notícias. Boas e ruins.
Battushig é o primeiro a juntar-se a mim. Ele acena em uma das telas divididas.
— Olá, Leyla. Espero que não esteja muito calor no Cairo.
— Oi, pessoal. Vocês conseguiram alguma coisa?
— O Professor Keusséoglou está decifrando o texto em Atenas. Ele já nos colocou no rastro de um dos soldados de Alexandre, o Grande, que general Ptolomeu, aparentemente, encarregou com a missão de esconder...
— O quarto pedaço dessa maldita estrela! O desenho se encaixa?
Capítulo 13
— Sim, Leyla — diz Professor Temudjin. — E todos os historiadores e geógrafos na rede estão trabalhando no documento. Estamos tentando reconstruir a rota que o soldado fez ao sair da Índia, embora a história do pobre homem seja um pouco desarticulada.
— E como posso ajudar? — fala meu querido John, que acaba de aparecer na tela. Acho que ele acabou de acordar, julgando pelas marcas de travesseiro no rosto e pelo cabelo parecer um frango eletrocutado.
— Assim que conseguirmos estabelecer uma rota razoavelmente correta da jornada dele — continua Professor Temudjin. — Leyla, você e os arqueólogos podem olhar nos templos dedicados a Zeus, que existiram no final do século quatro AC.
— Diga-me, meu pombinho, que eu amo mais do que doce turco, quando você volta?
— Hã... — ele diz, ficando tão vermelho quanto uma pimenta. — Leyla, não estamos em uma conversa privada...
Capítulo 13
— Eita! — eu digo, com os olhos arregalados, envergonhada. — Desculpa, vou deixar vocês continuarem com os trabalhos...
Apesar do estresse óbvio deles, os membros da Rede dizem adeus com sorrisos, antes de encerrarmos a videoconferência. Essa sou eu, Leyla, a palerma!
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Capítulo 14
País Basco, Nadja
Acidentalmente, ativei a porta para uma passagem secreta e agora estou presa em um quarto sem portas nem janelas, escondido atrás da biblioteca. Poderia ser um quarto do século XXII, com tanto equipamento futurístico de alta tecnologia. As paredes são cobertas de telas, todas desligadas. No meio do quarto há uma mesa de vidro razoavelmente alta, refletindo uma luz azulada pelo quarto escuro. Vejo três alavancas no centro da mesa, que me lembra das alavancas de marcha dos carros elétricos do castelo. Livro-me do pensamento estranho e concentro-me em como sair pela passagem secreta. Já me imagino morrendo de fome nessa prisão à prova de som, minha garganta dolorida de tanto gritar por socorro, inaudível do lado de fora, enquanto meu pai é atormentado pela dor de não me encontrar, revirando cada pedra no final do penhasco, implorando para o oceano devolver o corpo da sua menina desaparecida. Na verdade, acabei de pensar em uma situação ainda pior. E se eu for descoberta aqui por Hannibal, o único que sabe da existência dessa passagem secreta, quando ele retornar amanhã, às dez da manhã... Em ambos os casos, estou morta!
Capítulo 14
Empurro com força as prateleiras atrás de mim, esperando por um clique que salve minha vida. Tento remover os livros, mas parecem colados às prateleiras. Ataco o chão, primeiro de pé e depois de quatro, tentando arrastá-lo, deslizá-lo, mas nada acontece, absolutamente nada. Corro minhas mãos pelas paredes do quarto e, depois, sobre o estofamento à prova de som que as cobre. Mas não sinto nenhuma elevação, alavanca ou sistema de bloqueio. Não é possível. Deve haver uma maneira de abrir essa maldita passagem! Será que as alavancas na mesa de vidro servem para abrir e fechar essa porta invisível?
Ando determinada até a mesa, mas congelo quando vejo o que está no centro. Sinto-me perdida e sem saída na frente destes controles, que são tão estranhos para mim quanto a cabine de um ônibus espacial. Estava esperando encontrar algum tipo de computador em que, além de poder escrever meu testamento, eu pudesse pedir ajuda para o mundo lá fora, nem que fosse por um simples e-mail. Mas não, não há nada além destas três alavancas... Toco uma e quase grito de surpresa com o resultado.
Capítulo 14
As telas que cobrem as paredes ligam. Sou cercada por imagens em movimento que fazem minha cabeça girar. Parece que as telas estão conectadas a câmeras, filmando em tempo real quase todos os lugares ao redor do mundo. Estou em uma torre de controle digna de uma agência de inteligência. Respiro fundo para me recompor antes de estudar as telas. A primeira seção mostra a área do castelo, incluindo a pista onde chegamos e a área reservada para os cavalos. A segunda mostra... o interior do castelo, incluindo os quartos que nos foram dados! Estou indignada com tamanha violação da minha privacidade! Quem é esse cara, algum tipo de maníaco paranoico? Vamos, controle-se! Quero saber o que Hannibal está procurando quando usa essa sala de controle.
Agora há uma mudança de cenário, provavelmente um outro país. Imagens de dentro de um edifício comercial ultramoderno. É... a Hannibal Corp. em Massachusetts, de acordo com a placa na entrada do prédio. Vejo vários laboratórios que parecem estar congelantes, visto que os técnicos estão todos agasalhados. Esta empresa fabrica refrigeradores ou coisa do tipo? Continuo
Capítulo 14
examinando. Esta mostra vitrines de antiguidades, incluindo roupas velhas, armas brancas, artigos de montaria e um pedaço quebrado de uma joia. Parece quatro pontas triangulares de uma antiga coroa quebrada. E o que é isto? Posso ver os rostos de um grupo de jovens conversando em frente aos computadores deles ou pelo telefone... Por que ele está espiando este grupo de pessoas em particular? E não tem som, então é impossível de entender alguma coisa. A tela final mostra um castelo incrível, tipo algo que saiu de um conto de fadas, bem no meio de um vale estreito e escuro, cercado por uma fileira de pinheiros altos. É ainda mais impressionante do que o castelo que estou agora, no coração do país basco. Pedras, torres, esculturas, lagos, tudo parece ter sido criado por um arquiteto assombrado pelas lendas sanguinárias da cavalaria perdida. Brrr! E, depois, em um tipo de clareira abaixo do castelo, percebo um garanhão, quase adulto e completamente preto, exceto pela estrela branca em sua fronte.
Sua aparência é formidável, com sua musculatura desenvolvida e a elegância rara e majestosa de seus movimentos. Nunca vi essa raça de cavalo antes e estou fascinada com o
Capítulo 14
poder e a determinação que emanam desse garanhão lindo e estranho.
Então meu olhar é desviado para outras imagens extremamente perturbadoras. Posso ver uma construção com vários estábulos dentro, e um grupo de éguas de barrigas inchadas deitadas nas baias. Elas parecem estar dormindo sob a influência dos cateteres conectados a elas. Quando olho as imagens mostrando o porão do edifício, fico chocada com a visão de um lugar que poderia ser o laboratório do Frankenstein. Há mesas e equipamentos cirúrgicos grandes, pessoas com jalecos brancos e máscaras, tubos de ensaio, microscópios e computadores. As paredes estão cobertas por diagramas de DNA de cavalo e desenhos de um cavalo preto e seus vários estágios de desenvolvimento. Não entendo. Então meus olhos são atraídos por aquários construídos nas outras paredes. Primeiro acho que eles contêm peixes estranhos, mas depois percebo que são cavalos imóveis boiando. Eles são potros no estágio embrionário. Atordoada, olho de volta para o cavalo pastando no campo. A semelhança incontestável entre o garanhão e as espécimes boiando me fazem gritar de horror:
Capítulo 14
— Que monstro!
Hannibal está criando cavalos geneticamente modificados! Ele é louco! Tenho que sair daqui e avisar meu pai! Precisamos sair de perto desse homem louco e perigoso o mais rápido possível! Mas ainda não encontrei uma forma de sair dessa prisão!
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Capítulo 15
Começo a mexer nas alavancas, uma a uma, de forma furiosa e, de repente, sou atingida por uma onda de tontura quando sons explodem de todas as telas, as línguas de vários países misturando-se em um barulho atordoante. Cubro meus ouvidos e tento achar uma forma de desligar a energia para que eu possa parar o barulho, um cabo para desconectar ou algo do tipo. Então noto algo que parece um interruptor na beirada da mesa. Desligo-o e os sons e as imagens param imediatamente. Estou rodeada pela escuridão novamente, exceto pela luz azulada vinda da mesa, como um bloco de gelo. Acalme-se, Nadja. Pense.
Tenho que ser racional: uma coisa de cada vez. Ligo o interruptor. As telas voltam a ligar, mas desta vez não há som. Primeira alavanca: o som vem da tela do meio. O som do trânsito de uma cidade desconhecida. Movo a alavanca para a esquerda. A localidade muda e vejo jovens trabalhando em volta de mesas repletas de componentes mecânicos e eletrônicos, conversando em uma língua incompreensível. Apesar de tudo, procuro uma face tranquilizadora para me apegar. Uso a alavanca para mudar de uma tela para a outra, um
Capítulo 15
turbilhão de movimentos por todos os lados, pessoas em ação. Então paro em uma tela em que as imagens não se mexam muito. Vejo um homem de meia idade, de pele escura, sentado em uma mesa coberta de livros. Ele está de frente a um computador, seu rosto parece bem aflito atrás de seus óculos redondos, concentrado em um caderno grosso, no qual ele rabisca símbolos estranhos. Ele parece um estudioso, um homem sábio. Se ao menos eu pudesse me comunicar, ele poderia alertar alguém, alguém que pudesse me ajudar a sair daqui!
Pergunto-me para que servem as outras alavancas.
A segunda é usada para aproximar e afastar a tela selecionada. Posso explorar o escritório do homem estudioso, para ver o que ele está escrevendo em seu caderno, mas não é de muita utilidade para mim. Vamos tentar mover a terceira alavanca. Nada acontece. Calma, posso ouvir o lápis arranhando as páginas, e até posso ouvir o homem respirando. Certo, posso espiar as pessoas daqui, examinar cada detalhe sonoro e visual de sua vida, mas há alguma forma de comunicar-me com elas? Minha mão aperta a alavanca de frustração. Ouço um clique e
Capítulo 15
começo a xingar em russo. O homem pula e olha ao redor dele. Ele faz uma pergunta em uma língua que não entendo e depois repete em russo:
— Tem alguém aí? Você é russa? Senhorita? Onde você está?
Começo a tagarelar em alta velocidade.
— Senhor! Senhor! Por favor, me ajuda! Meu nome é Nadja. Estou presa em... algum lugar horrível, na casa do Sr. Hannibal. Não sei como sair daqui. Ele...
— Hannibal? Você disse Hannibal?
— Sim, sim, é um quarto secreto dentro do castelo. Há câmeras e microfones de espionagem em todos os lugares. Abri o quarto sem querer e não sei como sair daqui. Meu pai não sabe onde estou. Eu...
— Acalme-se, respire. Vamos encontrar uma saída. Entrarei em contato com Battushig. Ele é o nosso especialista em TI, redes, câmeras e todas essas coisas. Ele saberá como tirar você daí.
Capítulo 15
Observo ele teclar com os dedos em velocidade máxima, murmurando:
— Se o “Big Brother” está nos vigiando, significa que podemos vigiá-lo também...
Então ele levanta a cabeça e tenta sorrir para mim.
— Senhorita, não posso vê-la mas, enquanto esperamos Battushig, poderia me dizer quem você é, onde está e o que faz aí? Quanto a mim, sou o Professor Temudjin da Faculdade de Ciências de Ulan Bator, na Mongólia...
Conto ao Professor Temudjin a minha história. Ele escuta atentamente, balançando a cabeça e parecendo cada vez mais assustando, de vez em quando perguntando por detalhes. Ele me pede para descrever a tela que mostra os quatro triângulos da coroa quebrada e, quando o faço, o rosto dele fica sombrio, antes de sussurrar:
— Então ele já tem um...
Capítulo 15
Ele se recompõe imediatamente e explica que a “Rede” da qual ele faz parte está tentando evitar que Hannibal execute seu plano terrível...
Depois escuto a voz de um jovem no escritório do professor. Ele está falando a língua que falam na Mongólia, e o professor traduzindo para russo para mim:
— Nadja, Battushig conseguiu invadir o sistema de Hannnibal. Ele abrirá a passagem secreta para que você possa escapar, mas Hannibal com certeza descobrirá a sua intromissão. Você e seu pai podem estar em perigo. Você precisa sair do castelo o mais rápido possível. Você pode entrar em contato com a rede através da Universidade de Ulan Bator. Boa sorte.
Então escuto um barulho fino, e o canto do quarto pelo qual entrei começa a rodar. Corro por ele, finalmente saindo da caverna de espionagem de Hannibal. Tenho que avisar ao meu pai de tudo o que está acontecendo e precisamos sair daqui!
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Capítulo 16
Corro escada abaixo na velocidade da luz, a informação terrível que recebi do Professor Temudjin ressoando em minha cabeça. Não grito por medo de ser encontrada, mas estou desesperada para encontrar meu pai. Corro para os quartos e abro a porta do meu pai: está completamente vazio! O meu está do mesmo jeito, os lençóis foram retirados e os armários estão vazios. Abro a porta da sala de jantar enquanto corro. De novo, vazia. Minha última chance de encontrá-lo: com os cavalos. Corro para fora do castelo e fico ensopada pela chuva fria. As pedras da entrada principal machucam meus pés. Deixa pra lá, vou pegar um dos carros elétricos e correr até os cercados. Droga, não vejo nenhum carro estacionado por perto. Vou ter que me virar. Corro feito uma maratonista carregando uma tocha!
A chuva encharcando meu corpo mistura-se com suor, minha respiração tornando-se cada vez mais curta. Mal consigo raciocinar com todo o sangue correndo nas veias, pulsando em minhas têmporas. Não posso mais sentir meus pés esfolados, só sei que pisam no chão como se tivessem vontade própria. Ao aproximar-me dos cercados,
Capítulo 16
começo a gritar loucamente, chamando por meu pai e pelos cavalos. Mas apenas o vento e a tempestade respondem aos meus chamados.
Acredito que todos devem ter deixado o castelo e os arredores enquanto eu estava trancada na biblioteca. Sou dominada pelo pânico. Foram todos embora, largaram-me sozinha nesta prisão imensa. A única forma de sair daqui é se eu pular no oceano e nadar até a costa, ou torcer para ser resgatada por um barco. Preciso achar alguém que possa me ajudar a encontrar meu pai. Ando até a beira do penhasco como um robô, olhos cegos pelas lágrimas, rios de suor e chuva. O vento me sacode, fazendo com que eu tropece. Luto para passar pelos arbustos bloqueando meu caminho. Imploro para que eles me deixem passar, para me darem uma chance de alcançar o oceano, minha voz rouca de tanto gritar, quando, de repente, sou distraída por luzes fortes e barulhos altos. Cubro meus olhos com as mãos e olho para o céu. O brilho continua mas não há trovão, a tempestade é silenciosa. O que é este fenômeno climático estranho?
De repente, sinto tentáculos de polvo me agarrando por trás, arrancando-me dos
Capítulo 16
arbustos, arrastando-me à força, enquanto sons estranhos soam em meus ouvidos. Conto com o que resta da minha força para escapar dos tentáculos, para continuar em direção ao oceano, mas alguém está dizendo meu nome sem parar entre os sons estranhos e, então, sou trazida de volta à realidade. Baixo a guarda por um instante e tento ver quem está me chamando. Eu me viro. Filipe está parado em minha frente, encharcado, seus olhos brilhando de preocupação. Não entendo o que ele está tentando me dizer. Ele me arrasta pelo braço para que eu o siga, mas minhas pernas desistem e sinto-me perdendo a consciência. Minha vontade cede junto com meu corpo e, ao cair, sinto-o me segurando. Antes de desmaiar, ele me pega nos braços, carregando-me para longe do penhasco...
— Pai!
Abro os olhos, gritando com uma voz rouca que mal reconheço. Luto como um tigre tentando escapar das correntes, antes de reconhecer o rosto de Filipe, meu salvador, inclinando-se sobre mim e fazendo sons consoladores. Acalmo-me um pouco e encontro-me meio reclinada, aconchegada em um sofá confortável. Mas não é um sofá numa sala, apesar da
Capítulo 16
caneca de chá que Filipe está me oferecendo, mas um assento em um avião pequeno, julgando pelas nuvens que vejo passando pelas janelas. Bombardeio Filipe, perguntando:
— Onde estão meu pai e os cavalos?
Mas Filipe balança a cabeça. Ele não entende nada de russo, e eu, de basco. Sou tomada por preocupação novamente: Pai, Mishka, Mysh', Zaldia, onde vocês estão? Filipe apoia a caneca de chá e me entrega um tablet, gesticulando que devo apertar um botão.
A voz carismática e melosa de Hannibal soa no tablet.
— Estávamos esperando você se resolver e dar as caras. Mas posso garantir que seu pai e os cavalos estão seguros comigo. Depois da sua... decisão de brincar de esconde-esconde, por assim dizer, já deve saber que não direi onde você está neste momento. O trabalho para o qual contratei seu pai será finalizado em breve e, então, você terá suas companhias de volta em perfeito estado. Desde que, é claro, você não conte a ninguém sobre a sua visita ao país basco. O avião levará
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você para Vladivostok, onde seu tio e tia a receberão. Há alguns presentes para a sua família na bagagem, junto com os que você está usando. Eu gostaria de termos nos conhecido melhor, Bosikom Printsessa...
A mensagem acaba com o “princesa descalça.” Louca de raiva, tiro os cobertores de cima de mim e olho para meus pés. Estou usando o par de sapatilhas azul-safira que combinavam com o vestido azul que eu tive vergonha de provar na loja que Filipe me levou, e que estou vestindo. Sinto meu rosto inteiro ficar vermelho, enquanto puxo o cobertor de volta para cima de mim, percebendo Filipe desviar o olhar e virar-se para as nuvens.
Se eu pudesse, gritaria até explodir o avião, gritaria de vergonha e de raiva desse homem que acha que pode comprar tudo, controlar tudo. Assim que eu colocar meus pés no chão, vou resgatar meu pai e os cavalos das garras desse maluco. Vou entrar em contato com a Rede e juntar forças com eles para impedir que Hannibal consiga seu objetivo. Ele não vai vencer!
Capítulo 16