Cavalos lendários

Ela se chamava Tormenta

Altaïr
Amira
Tormenta
Zaldia
Bucephalus

Conteúdo

Prólogo

Prólogo

Meu general, terei eu falhado na missão que confiara a mim?

Cavalguei incansavelmente por estas terras. Não consegui usar o seu passe com as tribos bárbaras que encontrei; elas falavam uma língua incompreensível e mostraram-se hostis. Ocasionalmente, tive que usar minha espada para abrir caminho; venho evitando o contato humano desde então. Em seguida, as montanhas, os vales e as planícies deram lugar a uma vasta imensidão de água salgada.

Não tive opção senão viajar para o oeste, em direção à costa, esperando encontrar uma forma de atravessar este mar e continuar minha rota para o sul. Encontrei um porto onde alguns barcos de negociantes estavam ancorados. Fazendo gestos e mostrando algumas das moedas de ouro que você me deu, consegui comprar uma passagem com o capitão de um dos barcos para mim, mas não para meu cavalo. Com pesar, concedi-lhe a liberdade. Estava apenas começando a gostar do balançar das ondas quando, depois de muitas milhas ao mar, fomos atacados por um barco.

Prólogo

Os piratas eram tão cruéis quanto eram habilidosos. Aproximando-se pelas laterais, eles começaram a embarcar. Lutei bravamente com a tripulação, mas logo percebi que os assaltantes haviam tomado o controle e decidi arriscar. Fiz um corte em minha coxa, coloquei o objeto que você me deu dentro do ferimento e enfaixei minha perna com um trapo rasgado da vela. Os piratas mataram todos aqueles cujos ferimentos eram muito sérios, saquearam o carregamento do barco e afundaram-no no fundo do oceano. Os sobreviventes foram acorrentados aos remos, escravizados a chicotadas impiedosas; e, assim, começou a minha vida como remador escravo.

Este mar foi o cenário de um balé de batalhas entre bárbaros, cada uma mais sangrenta do que a anterior. Sobrevivi como um pedaço de mercadoria humana. A força bruta permitiu-me tolerar o remo sem gemer nem implorar. Escapar era impossível. O ferimento em minha perna cicatrizou rapidamente e ninguém podia adivinhar o que estava escondido nela.

Estações, depois anos de escravidão se passaram, onde fui jogado do mar para a

Prólogo

terra e de volta para o mar, descobrindo a vastidão e diversidade deste mundo que Alexandre queria comandar. Vivi como escravo até uma tempestade despedaçar o barco do meu último dono. Fui carregado junto com os pedaços do barco para uma costa desconhecida. Libertei-me da corrente que ainda prendia meus tornozelos batendo-a contra as pedras e, enfim sozinho e livre, deixei o mar para trás, com suas ondas mais cheias de suor e sangue do que os campos de batalha que atravessei com você, meu general, em busca da glória para Alexandre, o Grande. O que aconteceu com você, após a derrota em Hidaspes? O que aconteceu com o nosso Rei, o qual vi cair e depois ser carregado numa maca para fora do campo de batalha sob suas ordens?

Lembro-me deste jovem, um rei extravagante, intrigante e invencível, sentado em seu magnífico garanhão Bucephalus, e por quem cada um de seus homens teria dado a vida sem hesitar. Por que o desejo impassível dele de conquistar o mundo tinha que levá-lo, levar-nos à injustiça, ao excesso e à loucura destes massacres? Entramos na batalha final contra os indianos com medo e desgosto em nosso ventre, mas só porque você nos pediu, Ptolomeu. Seus

Prólogo

homens acreditavam em você. E, ainda assim, sabíamos que, para a maioria de nós, esta batalha seria a última...

Dado por vencido nestas costas do fim do mundo, cercado por nada além de ondas até o pôr do Sol, desisti de encontrar um caminho para o sul. Decidi buscar abrigo no interior. Um dia, quando o cansaço da solidão e da febre superaram minha coragem e força, uma mulher bárbara, cercada de galinhas magras, acolheu-me e deu-me comida. Aprendi a língua, trabalhei ao lado dela nas plantações e incrementei suas refeições com carnes de animais que eu abatia. Até o dia em que incomodei um urso da montanha durante uma caçada. Ele me causou ferimentos terríveis antes que eu o conseguisse derrotar.

Posso sentir minha vida se distanciando enquanto caminho, e, então, finalmente rastejo de volta para a minha companheira. Não terei tempo de ver o rosto do meu futuro filho que cresce em seu ventre. Não terei tempo de contá-la a história daquilo que está escondido em minha coxa. Será enterrado junto com meu corpo nesta terra estrangeira, que poderia ter sido minha um dia. General Ptolomeu, carreguei o objeto

Prólogo

que você me confiou o mais distante que pude. Embora não tenha conseguido levá-lo para a fronteira ao sul, mantive-o escondido por todos estes anos e assim continuarei fazendo.

General, morrerei sem saber a resposta para a minha pergunta. Falhei na minha missão?

Soldado Efcharisto, aproximadamente 310 AC.

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Capítulo 1

Ela nasceu prematura, numa noite durante uma tormenta, uma tempestade violenta. Enquanto meu avô Ramundo tentava salvar a mãe de sangrar até a morte, eu esfregava a potra com palha para remover o resto da membrana da bolsa amniótica que a cobria e para tentar aquecê-la. Ela era tão pequena e mal se mexia. Sem saber por quê, comecei a assoprar as narinas dela com toda a força, como se mesmo com apenas cinco anos de idade eu pudesse, de alguma forma, incentivá-la a respirar. Então continuei esfregando o peito dela, encorajando-a, assoprando em suas narinas, apesar do apelo do meu avô para que eu parasse de atormentar a pobre potra. Isto me fez cair no choro. Eu a segurei firme, embalando-a, implorando que se levantasse. Então senti a mão do meu avô em meu ombro, forçando-me a deixá-la. Naquele momento, ouvimos o estrondo ensurdecedor de um trovão. Senti uma queimação intensa dentro do meu peito, e a potra, até então imóvel, pulou em meus braços. Abri os braços, incapaz de acreditar no milagre que estava acontecendo. As pernas da potra, movidas por um instinto de sobrevivência ancestral, moveram-se num lento galope. Eu podia ouvir o bater frenético do coração dela, enquanto tentava levantar a cabeça.

Capítulo 1

— Maldito! — gritou meu avô incrédulo. — Pablo, você a salvou. Olha, ela está tentando se levantar!

Meus olhos embaçaram de lágrimas, agora de alegria. Assisti à maravilhosa visão desta égua recém-nascida conseguindo ficar de pé e dando alguns passos antes de cair de cansaço, depois tentando de novo, levantando-se sem jeito, confusa, mas já procurando a teta da mãe.

— Continua aquecendo ela — gritou meu avô —, vou buscar leite e um cobertor.

Ela andou de volta até mim e tentou chupar meus dedos, orelhas e nariz, enquanto eu continuava massageando-a com força. Quando meu avô voltou ao estábulo, pingando da chuva, ela dormira apoiada em mim. Ele colocou uma mamadeira em minha mão e enrolou um cobertor em meus ombros como uma capa, cobrindo e protegendo nós dois. Foi a primeira vez em que vi meu avô Ramundo mostrar seu lado gentil. A potra tremia dormindo, seus lábios chupando o ar antes de encontrar a teta e beber em grandes goladas. Meu avô balançou a cabeça antes de murmurar:

Capítulo 1

— Coisinha valente. Como vai chamá-la?

— Tormenta.

A noite em que Tormenta nasceu ainda é a lembrança mais forte que tenho. Crescemos juntos, conhecendo e consolando um ao outro. Logo ela cresceu e ficou forte, tornando-se uma potra graciosa de pelagem baia clara, crina chocolate e pernas brancas. Durante o verão, nós nos refrescávamos em minha piscina rasa; na primavera, brincávamos de esconde-esconde na grama alta, e até ensinei-lhe jogar futebol! Se minha avó não fosse tão rígida, “Verdammt, wir sind keine Tiere” (não somos animais!), eu teria dormido no estábulo ao lado da minha égua todas as noites. O primeiro drama aconteceu quando disseram que eu tinha que ir para a escola. Na Argentina, o estudo é obrigatório para crianças de 6 a 14 anos de idade. Tentando me consolar, eles me deixavam ir para a escola na vila vizinha a cavalo, como as crianças filhas dos empregados das fazendas, e “estacionávamos” nossos cavalos num campo próximo à escola. A próxima tragédia veio quando eu tinha 14 anos e tive que começar os

Capítulo 1

cinco anos de ensino médio na cidade de Santa Rosa. Não pude mais cavalgar até a escola e, em vez disto, tinha que pegar ônibus. Mas o pior foi ter que ir para a universidade, em Buenos Aires.

Claro que eu estava animado em deixar o ninho e aproveitar a independência nos corredores do dormitório na capital, mas também estava de coração partido em deixar a minha Tormenta para trás. Eu só a via durante os feriados e as férias entre cada semestre. Vô Ramundo falou comigo no dia antes da minha ida para Buenos Aires. Sei que ele estava profundamente triste por eu estar me mudando para longe da fazenda, onde o futuro dos gaúchos de antigamente é agora o mesmo dos peasanos, os lavradores mais pobres. Mas tudo o que ele disse foi o quão orgulhoso estava de mim e de meus estudos. E apontou para o pedaço de metal no meu peito herdado do nosso ancestral Esteban, preso a um cordão de couro que uso desde criança:

— Sempre trouxe sorte para a nossa família. Tenha-o sempre contigo e seja forte. E não se perca na capital. Adios!

Capítulo 1

Agora que sei de onde veio este pedaço de metal maldito; entendo porque nunca me trouxe sorte alguma...

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Capítulo 2

“Mexicanos são descendentes dos astecas, dos peruanos dos incas, e dos argentinos dos navios.” Octavio Paz, poeta, ensaísta e diplomata mexicano (1914–1998)

Em 1877, o destino pregou uma peça em meu ancestral Esteban Ruiz Escobar Mendoza: a mulher dele morreu durante o parto, levando consigo o primeiro filho deles; uma epidemia de febre aftosa dizimou seu rebanho; um incêndio florestal devastou suas terras e fazenda. Ele não tinha nada mais além deste pedaço de metal gravado com símbolos indecifráveis, que estava na família desde sempre e que foi encontrado, milagrosamente intacto, nas cinzas da fazenda. Sozinho e sem dinheiro, Esteban decidiu deixar a Espanha e foi em direção ao Novo Mundo, determinado a começar uma nova vida e fazer a sua fortuna lá. Ele chegou em Buenos Aires, Argentina, em 1878.

Esteban era um trabalhador incansável e conseguiu juntar dinheiro o suficiente para comprar algumas cabeças de gado e terras. Nas vastas e monótonas planícies dos Pampas, nome da tribo nativa americana que viveu nesta área, ele escolheu um

Capítulo 2

pedaço de terra entre o Rio Salado e o Rio Colorado. Construiu sua fazenda nestas terras ricas onde o pasto era fértil e nutritivo, e onde cavalos e gado podiam ser criados facilmente. Logo precisou de ajuda para cuidar do gado e, então, contratou alguns gaúchos, boiadeiros e cuidadores. “Gaúcho” significa vadio na língua nativa sul-americana Quechua; eles são mestiços de espanhóis com índios, rejeitados pela sociedade. Montados em Crioulos, uma raça de cavalos argentinos corajosos, eles provaram ser tão calados quanto trabalhadores. Um dia, enquanto percorria suas terras, Esteban esbarrou com um gaúcho banhando-se no rio. Ele ficou surpreso ao descobrir que era, na verdade, uma jovem mulher, que estava vivendo escondida com estes homens rudes e independentes. Foi amor à primeira vista; Esteban casou-se com a misteriosa e forte mestiça sem nome. Ela lhe deu muitos filhos, dos quais gostava do seu próprio jeito, mas dizem que ela preferia cavalgar sozinha nos Pampas.

Quando olho para esta foto desbotada acima da lareira, as pernas dele revestidas com guardamontes, que parecem asas de borboletas de couro e que o protegiam de arranhões, e o olhar dele,

Capítulo 2

severo e distante, me dizem que eu não teria gostado de encará-lo em um duelo. Meu avô, Ramundo Ruiz Escobar Mendoza, disse que devo ter herdado o temperamento ruim dele. Mas o homem que eles chamam de “Zorro”, e que toma conta da fazenda herdada de nossos ancestrais com mão de ferro, também tem culpa no meu “temperamento ruim”. Acho que ele transferiu para mim a esperança de ver o próprio filho seguindo seus passos e comandando a fazenda. E isso é muita pressão...

Enfeitiçado pelos cabelos claros e olhos zuis, os quais também herdei, meu querido avô casou-se com Helga Siegfried, filha de imigrantes alemães. Eles tiveram apenas um filho, Cesar Ruiz Escobar Mendoza, meu pai, que rapidamente deixou os estábulos para se tornar um dançarino profissional de tango. Ah, a melancolia esmagadora desta dança de corpos e almas febris... Ele se casou com minha mãe Mafalda, outra dançarina incrível. E eles me deram o nome de Pablo, em homenagem ao pintor Picasso, que minha mãe adorava. Mas eles se deixaram levar pela febre do tango e saíram pelo mundo com seu espetáculo, então deixaram minha educação por conta do meu avô Ramundo e da minha avó Helga.

Capítulo 2

Resumindo, se eu sou um solitário misterioso de temperamento ruim, a culpa é da minha família. Mas quando estou montado nas costas da Tormenta, galopando a toda velocidade pelos Pampas, sou outra pessoa. Meu sorriso é tão largo de alegria e satisfação, que moscas poderiam ficar presas em meus dentes.

Preciso parar de pensar em quando verei minha égua de novo e correr para a sala de conferência. Hoje temos um cientista convidado da Mongólia, do outro lado do mundo: Professor Temudjin que, junto com seus alunos da Universidade de Ulan Bator, desenvolveu um robô que procura pessoas perdidas em condições climáticas extremas. Parece que este projeto foi inspirado em uma história real, algo que aconteceu com um de seus alunos nas montanhas geladas do Monte Altai...

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Capítulo 3

Em meu aniversário de 10 anos, recebi um presente enviado pelo correio de Xangai. Era dos meus pais, os sempre ausentes, que estavam em turnê na China na época. Eles me mandaram um avião de remoto controle, que era ligado por um cabo longo a um tipo de videogame portátil. Cheio de alegria, empinei e fiz o avião voar pela casa, fazendo som alto de motor, até que meu avô me colocou para fora, gritando “Raus!” Este brinquedo me convidava a sair em uma jornada extraordinária. Imaginei-me orgulhoso e livre a bordo do meu avião, pronto para juntar-me aos meus pais no outro lado do mundo quando eu quisesse, e também saindo da Argentina para explorar terras desconhecidas. Eu era um herói, um aventureiro ao resgate, seja distribuindo comida para países pobres, seja bombardeando vilões; eu só precisava sonhar. Tornei-me Antoine de Saint Exupéry, entregando correspondência pelo mundo pela Aéropostale, passando por todas as dificuldades, ou Charles Lindbergh, a primeira pessoa a cruzar o Atlântico sozinho. Um piloto incansável e invencível, acabei aterrissando... nos galhos de um jacarandá de cem anos plantado pelos meus ancestrais na entrada da fazenda. As flores

Capítulo 3

azuis extravagantes pareciam formar um céu deslumbrante acima de mim, e eu me perguntava como seria capaz de voar alto o bastante para pegar meu avião de volta. Claro que tentei puxar o cabo como louco, mas tudo o que consegui foi arrebentá-lo. O plano B era escalar, mas precisaria de uma escada para alcançar os primeiros galhos. Então optei por uma abordagem diferente.

Assobiei alto e minha leal Tormenta, que estava pastando a alguns metros dali, levantou as orelhas ao ouvir meu chamado. Ela relinchou feliz e galopou em minha direção. Ela empurrou a ponta do nariz contra meu pescoço, mordiscou meu cabelo e empinou-se, pronta para brincar. Foi difícil fazê-la entender que eu só queria usá-la como escada, mas acabei conseguindo acalmá-la e fazê-la ficar parada embaixo dos galhos do jacarandá. Fiquei de pé em suas costas e, com os braços esticados, agarrei um galho e ergui-me como um macaco. Tive que escalar um pouco mais alto para alcançar o avião, mas, após algumas manobras que fizeram o jacarandá perder várias flores, consegui soltá-lo. Deixei escapar um grito de vitória, mas, no mesmo momento, meu pé escorregou. Caí, batendo nos galhos como uma

Capítulo 3

fruta madura e caindo no chão numa nuvem de pétalas azuis. Os frutos do meu esforço me renderam um avião e duas costelas quebradas. Para minha sorte, já que estava atordoado demais para chamar ajuda, Tormenta causou tamanha algazarra que chamou a atenção dos trabalhadores da fazenda.

Aquelas semanas de recuperação determinaram meu futuro. Eu não podia cavalgar nem ir para aula, mas fiz de tudo para consertar meu avião. Usando peças de outros brinquedos eletrônicos trazidos pelos meus colegas de classe, ferramentas emprestadas do trabalhador que me resgatou debaixo no jacarandá e conselhos de apaixonados por aeromodelismo, consegui remontar meu avião completamente, e, desta vez, sem nem precisar do cabo de conexão. Nos anos que antecederam o ensino médio, quando o tempo estava muito ruim para brincar nos Pampas com a Tormenta, entretive-me com aprimoramentos no avião: usei materiais mais resistentes e mais leves, aumentei o tempo de voo e o alcance do controle remoto e até mesmo instalei uma câmera de mão e achei uma forma de controlar o avião pelo meu laptop. Durante o último ano no ensino médio, meu professor de ciências convenceu meu avô a

Capítulo 3

matricular-me na Universidade de Buenos Aires. Ele disse que uma mente curiosa e afiada como a minha só poderia acabar na descoberta de novas tecnologias... e que eu também poderia miniaturar meu tanque voador!

Então é por isso que, hoje, estudo nanotecnologia e tenho interesse em drones, estejam eles voando, rastejando ou rolando. Mal posso esperar para descobrir tudo o que posso sobre este robô criado pelos universitários da Mongólia...

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Capítulo 4

Acho o “Drobot”, o robô-drone criado pelos alunos do Professor Temudjin, um trabalho de gênio! O formato, uma mistura de lagarta mutante e barata voadora, mesmo que pareça feio à primeira vista, permite que ele funcione em todas as condições geográficas e climáticas. Esta coisa ganharia uma medalha de ouro no decatlo: ele voa, pula, rasteja, corre, nada, esquia, lança ganchos, escala paredes e sai de qualquer situação. Também é “inteligente”, adaptando-se a qualquer condição que encontra, e é capaz de realizar operações autonomamente ou em resposta a comandos dados por controle remoto.

— É como o robô do Luke Skywalker em Guerra nas Estrelas, só que mais feio! — ri meu amigo Tiago, com sua voz de trovão, batendo em minhas costas.

Ele não consegue deixar de me envergonhar com suas interrupções idiotas. Mas o Professor Temudjin não fica nervoso, esperando a risada terminar antes de responder.

— Qual deles, R2-D2 ou C-3PO? De qualquer forma, por mais feio que seja,

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espero que nosso “Drobot” seja tão útil para a humanidade quanto os robôs de Luke Skywalker foram para ele!

E o professor continua o discurso. O Drobot é equipado com vários sensores, GPS, sonar, giroscópios e muito mais. Um computador processa todas as informações recolhidas, permitindo que ele adapte-se de acordo. Por exemplo, ele pode ajustar a própria trajetória de acordo com rajadas de vento ou correntes oceânicas. Também é capaz de retirar amostras de materiais, filmá-los, digitalizá-los, iluminá-los e registrá-los. Resumindo, esse robô possibilita realizar tarefas comandadas à distância que uma equipe de cientistas experientes bem equipados normalmente teria que fazer no local. E podemos fazer tudo isso sem precisar de notebook; basta um smartphone! Professor Temudjin depois nos mostra um filme na sala de aula, que demonstra como o robô pode ser usado em áreas perigosas para humanos, por exemplo, avaliando a toxicidade de águas subterrâneas poluídas ou inspecionando uma usina nuclear danificada, como em Fukushima. Também pode transmitir informações importantes para equipes de resgate em casos de incêndios florestais ou desastres naturais,

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como ciclones e furacões. As utilidades são infinitas. Mas ficamos todos muito impressionados com a parte do filme em que o robô foi capaz de detectar a localização de pessoas soterradas numa avalanche, reduzindo o tempo de resgate e aumentando consideravelmente as chances de sobrevivência delas.

— Vê como este Drobot difere-se dos drones militares utilizados em ataques cirúrgicos, onde alvos são atingidos à distância sem colocar em risco a vida do agressor?

Tiago, um pacifista antimilitarismo, levanta-se e começa um de seus discursos favoritos:

— É vergonhoso! Estes famosos “ataques cirúrgicos” causam danos colaterais inaceitáveis. Civis inocentes morrem ou são feridos e...

— Sem dúvida, meu jovem. — O professor interrompe, fazendo o Drobot voar pela sala e pairar em frente a Tiago, transmitindo a imagem do rosto dele para a tela. — É por isso que eu recomendo que meus alunos registrem uma patente, para evitar que esta invenção seja usada para fins violentos. Mas, agora,

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deixe-me prosseguir com o motivo principal desta conversa. — Continua, retornando o Drobot para a mesa dele com um simples mover de dedo no celular. — Como este é o foco de sua educação universitária, gostaria de explicar a contribuição inestimável que a nanotecnologia tem a oferecer, e como podemos usá-la para tornar este robô ainda mais eficiente.

Tiago, hipnotizado pela confiança discreta deste homenzinho, senta-se sem pronunciar nenhuma palavra em protesto.

No final do discurso fascinante, os alunos aplaudem-no antes de saírem da sala de aula, trocando comentários exaltados de aprovação. Todavia, eu decido ir até ao professor para expressar minha admiração e perguntar se gostaria de ver a minha criação, meu “Draeroplane”. Professor Temudjin, ocupado guardando suas coisas, olha e sorri. Então, como se uma represa tivesse rompido, começo a cuspir a história do meu avião. Mas, depois de um tempo, percebo que ele não está mais me escutando. Seus olhos estão fixados em meu peito e depois retornam para o meu rosto. Ele parece perplexo. Outros alunos tentam falar com ele, mas Professor

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Temudjin os ignora, vasculhando freneticamente seus bolsos e tirando uma caneta e um bloco pequeno e gasto, o qual ele me entrega.

— Escreva seu nome e telefone e mande seus planos e fotos para o e-mail da Universidade de Ulan Bator.

Depois ele tira um smartphone de outro bolso e pergunta:

— Posso tirar uma foto para me lembrar de você? Conheço tantas pessoas, é difícil lembrar o rosto de todo mundo...

Aceno com a cabeça, mudo. O professor me chama mais para perto, ajeita meu colar e tira algumas fotos. Sinto-me extremamente envergonhado, principalmente quando Tiago e alguns outros alunos começam a me gozar.

— Uuuhh! O senhor Pablo está fazendo um teste de elenco?

Neste momento, o Diretor de Estudos chega para dispersar a multidão e lembrar o Professor Temudjin de que precisa apressar-se se não quiser perder o voo. O professor concorda, coloca o telefone, o bloco e a caneta no bolso, pega a pasta e, antes de sair, cochicha em meu ouvido:

Capítulo 4

— Eu... alguém vai te ligar em meu nome muito em breve. Desculpe-me, gostaria de ter conversado mais com você. Você pode confiar nele...

— Vamos! — grita impacientemente o Diretor de Estudos. — Você sabe como é o trânsito em Buenos Aires...

Tiago me pega pelo braço e me arrasta pela multidão, cambaleando como uma galinha e falando com uma voz fina:

— Você vai ser uma estrela, querido! Vai atuar em Guerra dos Drones, Anatomia de Pablo e, talvez, até Gossip Boys! Me dá um autógrafo?

Escolho apenas rir da gozação de Tiago, mas não consigo tirar as palavras do professor da minha cabeça: — Alguém vai te ligar. Confie nele...

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Capítulo 5

Meu cérebro está acelerado, pensando em formas de aperfeiçoar o “Draeroplane” com novos programas. Acabei de entrar no refeitório da universidade, cheio de alunos barulhentos, e enchi minha cuia com água quente. Aqui, como quase em qualquer lugar na Argentina, você pode beber mate, a erva revigorante que tomamos em vez de chá e café, quando quiser. Bebo um pouco da bebida quente e levemente amarga com meu canudo de alumínio e tento colocar meus pensamentos em ordem. De repente, meu telefone começa a vibrar insistentemente...

Número internacional desconhecido. Seria a pessoa de confiança de quem o Professor Temudjin falou? Aceito a ligação apreensivamente.

— Aqui é John Fitzgerald Hannibal, da Hannibal Corp.

Eu deixo minha cuia cair. Existe alguém no mundo que não sabe quem é o Sr. Hannibal, o gênio bilionário cujas empresas estão à frente das mais avançadas inovações tecnológicas, e que também patrocina pesquisadores científicos pelo mundo inteiro? Quem não sonharia ganhar

Capítulo 5

uma bolsa de estudos oferecida apenas para os alunos mais promissores? Mas não entendo o porquê do Sr. Hannibal estar me ligando pessoalmente; acabei de começar meus estudos na universidade e ainda tenho que provar do que sou capaz. A não ser que eu tenha sido recomendado especificamente por um de meus professores... ou o Professor Temudjin, talvez? Não entendo. Ainda não enviei os planos do “Draeroplane” para ele.

— Meu jovem — continua Hannibal em espanhol perfeito, com um leve sinal de sotaque americano —, você usa um pingente que é de grande interesse para mim, devido à sua importância histórica. Gostaria que você o levasse para ser examinado por um dos peritos da Fundação Hannibal de História Humana, atualmente trabalhando em Buenos Aires. Um táxi está esperando por você na entrada principal da universidade e vai levá-lo ao local de encontro. Meu perito, Horacio Cortés, lhe recompensará pelo incômodo. E, evidentemente, você deve ir sozinho.

Não consigo nem dizer uma palavra pois logo ele desliga. Tenho este sentimento horrível de ter recebido uma ordem que não posso desobedecer, pior

Capítulo 5

do que quando meu avô Ramundo me mandava fazer algo sem explicar por quê. Odeio isso! Tudo o que quero fazer é ligar para Hannibal e mandar ele ir catar coquinho. Nervoso, pego minha cuia vazia e coloco-a dentro da bolsa. Pelo murmurinho do refeitório, ouço uma risada aguda e automaticamente viro-me em direção a ela. Tiago está ocupado, exibindo-se em frente a um harém de admiradoras exaltadas. É fácil quando se tem um corpo como o do Cristiano Ronaldo... Quando ele começa a apresentação, nada pode pará-lo, e, mesmo gesticulando feito louco, não consigo chamar a atenção dele. Queria contar-lhe sobre o telefonema, mas claramente não é uma boa hora. Engulo minha frustração e sigo para a entrada da universidade, xingando tudo e todos. Mal passo pela porta quando percebo o motorista de um táxi preto e amarelo verificando a tela de seu celular, antes de me chamar com gestos. Digo a mim mesmo que, mesmo que seja só para fazer meu avô feliz, eu poderia aprender uma coisa ou outra sobre este maldito pedaço de metal, trazido da Espanha por nosso ancestral Esteban...

O taxista coloca o rádio no volume máximo, evitando que eu faça perguntas. Ele dirige como

Capítulo 5

Fangio, o argentino cinco vezes campeão da Fórmula 1. Buenos Aires ocupa quase duzentos metros quadrados e é organizada num padrão perfeito de tabuleiro de damas que parece ser infinito. Quando cheguei na capital, voei meu “Draeroplane” sobre a cidade para dar uma olhada e fiquei impressionado com a geometria vasta e metódica.

Graças ao motorista correndo como um louco pelas avenidas arborizadas de arquitetura haussmaniana, fazendo um caminho que apenas ele parece conhecer, eu acabo não identificando onde estou e tenho que lutar contra o enjoo aumentando dentro de mim. Abro as janelas e seguro na maçaneta da porta, até que o motorista é obrigado a diminuir a velocidade pelas ruas de paralelepípedos. A julgar pelas fachadas de cores vivas das casas, baseado numa pintura de Benito Quinquela Martin dos anos 1920, estou na famosa vizinhança de La Boca.

Pelas janelas, posso ouvir pessoas chamando umas às outras em italiano. Sobre o aroma do rio próximo, posso identificar os cheiros deliciosos de tomates fervendo, comida frita, alho e muçarela crocante, vindos das varandas barulhentas dos restaurantes. O táxi

Capítulo 5

buzina nervosamente para os pedestres que andam calmamente e desliza pelos vielas, chegando a um beco sem saída. Ele manda uma mensagem de texto e, em alguns segundos, uma porta escondida atrás de lindas buganvílias se abre e revela um homem grande de terno de linho. O homem entrega para o taxista um rolo de dinheiro, antes de pedir que eu saia do táxi. Ele acena brevemente antes de apresentar-se.

— Meu nome é Horacio Cortès, um comerciante de antiguidades e perito a serviço da Fundação Hannibal de História Humana. Acompanhe-me...

Engulo seco e atendo ao pedido. Em que confusão fui me meter?

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Capítulo 6

Sigo o Senhor Horacio Cortès por um labirinto de corredores escuros até uma sala grande, que é iluminada pela luz do sol que entra por uma ampla janela. Vejo um quintal incrível lá fora, meu olhar dividido entre orquídeas sutis, rosas com pétalas de seda e plantas vibrantes com flores coloridas. Viro-me para o interior da sala e, enquanto meus olhos ajustam-se à luz, respiro profundamente o aroma de cera de abelha. Um assoalho de tacos perfeitamente encerados reflete a luz nos móveis: uma mesa grande esculpida, embutida com madrepérola e rodeada por poltronas de couro. Estantes que vão do chão ao teto contornam as paredes, cheias de livros antigos e uma coleção de todos os tipos de antiguidades. Uma sensação de luxo e fineza exalam deste lugar, escondido inesperadamente nesta vizinhança carente...

— Por favor, sente-se — diz Cortès, apontando para uma poltrona à sua frente.

Ele desliza um copo de cristal cheio de limonada em minha direção, os cubos de gelo fazendo barulho, depois toma um longo gole do próprio copo enquanto me examina

Capítulo 6

intensamente. Depois que coloco o copo de volta na bandeja ornamentada, Cortès tira uma caixa de plástico de uma gaveta. Ela contém equipamentos de um cirurgião-dentista. Então ele gesticula com sua mão bem cuidada, apontando para o apoio de couro da mesa que nos separa.

— Mostre-me o objeto.

Hesitante, tiro o pingente do pescoço e coloco no apoio de mesa. Cortès segura uma lupa na frente de um olho e gira o pingente usando uma pinça fina, similar àquelas usadas por colecionadores de selos. O rosto dele não demonstra nenhum sinal de emoção, nenhum interesse, mas acho que faz parte do trabalho dele como perito em antiguidades... Então ele coloca o pendente na mesa e comenta casualmente:

— Este pedaço de metal não tem valor de mercado. Acho que você já sabia disso.

Encolho os ombros.

— Não é de ouro, apenas uma liga de metais bem antiga. De qualquer forma, não está à venda; é uma herança de família.

Capítulo 6

— Bem, então conte-me o que a sua família sabe sobre este pingente. — continua Señor Cortès, tirando os óculos, ajeitando-se e apoiando os braços na poltrona.

Conto-lhe resumidamente sobre a expedição do meu ancestral Esteban, vindo da Espanha para a Argentina, mas, incomodado com a arrogância dele, não menciono o fato de este pedaço de metal também ter resistido a um incêndio...

— Então este objeto foi trazido para a Argentina em 1878.

— Isso mesmo. Agora é a sua vez de me contar uma coisa. O que você pode ver neste pingente? E por que o senhor Hannibal está tão interessado nele?

Ele dá um sorriso frio e fino.

— A Fundação Hannibal é tem muito interesse no período helenístico. Vejo que você nunca aprendeu grego, meu jovem, caso contrário teria reconhecido algumas das letras gravadas neste pingente.

Capítulo 6

— Este pedaço de metal veio da Grécia? Então o que ele estava fazendo na Espanha? Quão antigo é? E você sabe o que está escrito nele?

— Acalme-se — diz Cortès, com seu sorriso firme. — Para começar, eu não sei o que está escrito nele. Alguns destes símbolos gravados são mesmo letras gregas, mas elas não fazem sentido algum sozinhas. Este pingente é apenas um fragmento de outro objeto, cujo paradeiro, infelizmente, é desconhecido para a Fundação. E, como você, não tenho ideia de onde este pingente veio ou por que estava na Espanha no final do século XIX. Se você quiser saber quando ele foi criado e de onde veio, terá que nos deixar examiná-lo em um de nossos laboratórios.

Um brilho repentino de ganância nos olhos de Cortès aciona um alarme em minha cabeça. Estico o braço em direção ao apoio de mesa para pegar meu pingente, mas Cortès o agarra antes de mim, segurando pelo colar de couro e balançando-o em minha frente como um hipnotizador. Ele sussurra com uma voz melosa:

Capítulo 6

— Você o terá de volta depois de ser examinado, é claro, com um relatório detalhado das análises. A Fundação é muito generosa com aqueles que ajudam no desenvolvimento de pesquisas históricas.

— Já chega. Devolva-me — digo, tentando manter a voz o mais firme possível e erguendo minha mão.

— Mas você não gostaria de dirigir um belo carro esportivo? Seus avôs não adorariam ter uma boa aposentadoria, em vez de terem que continuar se arrastando para Buenos Aires para venderem animais no Mercado Ignas? O preço da carne não está tão bom esses dias...

Sou tomado por um mal-estar terrível. Como Cortès sabe tanto sobre minha família? E por que ele está tão desesperado para colocar as mãos neste “pedaço de metal sem valor”?

Cortès lentamente coloca o pingente em minha mão, o sorriso sumiu do rosto dele, trocado por um olhar de tristeza:

Capítulo 6

— Que perda para a história... Entretanto, a Fundação gostaria de manter um... hã, um tipo de cópia do original. Você já ouviu falar em impressão 3D? Ah sim, desde a crise financeira argentina, as verbas enviadas às universidades diminuíram consideravelmente. Mas minhas fontes disseram que os responsáveis pela sua instituição estão querendo adquirir uma destas máquinas. Será que a Fundação poderia fazer uma pequena gentileza? E talvez você queira ver pessoalmente como uma dessas máquinas, como a que temos na sala ao lado deste escritório, cria uma cópia exata de qualquer objeto que colocamos dentro dela. O que me diz?

Uoooou... Meus pensamentos estão se debatendo dentro da cabeça, como bolas de sinuca. Minha curiosidade vai ao limite e, apesar da minha desconfiança neste indivíduo excessivamente bem informado, acho que ele conseguiu me comprar... Mas é por uma boa causa! Um impressora 3D na universidade? Seria demais! E eu poderia manter a promessa que fiz ao meu avô de nunca deixar esse pingente sair da minha visão, já que vou estar presente quando for feita a cópia. Maldito, tudo bem então!

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Capítulo 7

Eu nunca teria imaginado que atrás deste escritório, decorado com um estilo antigo e sofisticado, existiria outra sala, extremamente moderna, estéril, sem janelas, ronronando como um monstro tecnológico. A máquina é conectada a vários computadores e dispositivos, e eu me pego fascinado pelo jeito que funciona. Cortès mostra as fases da impressão tridimensional.

— As antiguidades expostas no escritório são cópias perfeitas, feitas com gesso parisiense, usando o método de produção aditiva, desenvolvida pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts que, claro, é patrocinado pela Fundação. Mas aqui usarei FDM, Modelagem por Deposição de Material Fundido, onde um objeto de metal é “impresso” e a “tinta” é substituída por cera, cerâmica, plástico ou outros materiais.

Meu pingente, sem o colar de couro, foi colocado numa prateleira de vidro no meio de uma esfera translúcida.

— Primeiramente, moldo o objeto que quero imprimir em 3D usando este programa de computador. Depois,

Capítulo 7

defino as configurações de impressão, como velocidade, espessura de camada e precisão, e ajusto o esquema dos bocais de impressão ao gerar o código G. Gostaria de iniciar o processo de impressão?

Aperto o botão “Enter” e posso ver imediatamente o bocal se movendo atrás da tela de proteção térmica, onde começa a depositar pequenos filamentos de metal líquido, iniciando pelo contorno e depois preenchendo o meio, camada por camada, até que o objeto é completamente finalizado. O volume é criado pelas camadas depositadas uma em cima da outra. É fascinante.

Não sei por quanto tempo fico vendo o bocal dançar, mas o roncar do meu estômago me lembra de que preciso comer alguma coisa. Como se estivesse lendo a minha mente, ou talvez ele tenha uma ótima audição, Cortès oferece-me um maço de pesos.

— Onde estão os meus modos? Vá comprar um lanche. Espero que você goste de comida italiana. Não vou a lugar nenhum. Tenho que assistir à cada segundo deste processo. Ainda falta uma hora e quatro minutos.

Capítulo 7

Estou com receio de deixar meu pingente para trás. E se Cortès desaparecer e levá-lo junto? Sentindo minha hesitação, Cortès balança o dinheiro em minha frente e fixa o olhar no meu.

— Olha, meu jovem. Eu fui encarregado de fazer esta cópia e fui pago muito bem para isto. Eu vou finalizá-la. Posso garantir que não vou deixar esta sala.

A afirmação dele me faz ceder. Além do mais, digo a mim mesmo, esticar as pernas não vai me fazer mal algum. Pego os pesos e coloco-os em meu bolso, estico-me, estalando as costas, e começo a andar de volta para onde entrei. Meu Deus, já está quase de noite! O cheiro delicioso de comida provoca o meu nariz, fazendo meu estômago roncar violentamente. Não, calma, é apenas meu celular vibrando. Deve ser o Tiago me chamando para comer alguma coisa. Mas, antes de atender, percebo que tenho várias ligações perdidas. Por que o celular não tocou nem vibrou quando eu estava no escritório do Cortès?

Capítulo 7

— Tiago, não posso sair agora, estou um pouco ocupado...

— Pablo? — diz uma voz masculina, jovem mas determinada e com um estranho sotaque estrangeiro. — Por favor — ele continua em um inglês que eu tenho dificuldade de acompanhar —, escute com muita atenção. Estou ligando em nome do Professor Temudjin. Sou um dos alunos dele, Battushig, o que sofreu um acidente nas montanhas da Mongólia, aquele que o professor mencionou quando falou do Drobot. Caí numa fenda na galeira e encontrei um cavalo congelado. Depois que fui resgatado, pesquisadores da Academia de Ciências da Mongólia encontraram o cavaleiro e alguns objetos que nos permitiram datar a morte deles no final do século IV AC. Mas a Hannibal Corp tomou controle das operações. Eles levaram todas as descobertas em aviões refrigerados para o centro criogênico de Massachusetts, nos Estados Unidos. Um ex-aluno da universidade que trabalha lá disse que o cavaleiro estava carregando uma carta de câmbio e um passe militar assinados por Ptolomeu, general de Alexandre, o Grande, em 326 AC... O cavaleiro também estava carregando um objeto de metal com

Capítulo 7

gravações, muito parecido com o que você usa em volta do pescoço.

— Não estou entendendo!

— Escuta. Usando as suas fotos que o Professor Temudjin me enviou, pude identificar o pingente que você está usando como parte de uma estrela de cinco pontas. É idêntico ao pedaço encontrado no cavaleiro congelado na Mongólia e ao que foi roubado no Egito. Os três fragmentos se encaixam perfeitamente. Esta estrela foi usada por Alexandre, o Grande, um dos maiores conquistadores da história mundial. Espero que você não tenha dado nem vendido o seu pingente.

— Não, eu recusei. Mas o Senhor Cortès está fazendo uma cópia 3D dele nesse instante. É para uma pesquisa na Fundação Hannibal de História Humana e...

Sou interrompido por um estrondo furioso. Battushig continua imediatamente.

— Desculpe-me. A Fundação é apenas um pretexto. É o próprio John Fitzgerald Hannibal tentando colocar as mãos no pingente. Isso não pode acontecer,

Capítulo 7

custe o que custar. Eu conheci este homem. Ele é muito perigoso, acredite.

— Mas... eu...

— Esta estrela de cinco pontas é o selo de poder que fez Alexandre invencível, mas também o deixou louco. Foi por isso que Ptolomeu quebrou a estrela e deu os pedaços para vários cavaleiros, pedindo que eles os levassem para o mais longe de Alexandre possível. Hannibal agora tem pelo menos dois pedaços. Se ele usar o poder da sua rede de inteligência, seu apoio financeiro e seu domínio da mais sofisticada tecnologia para encontrá-los, então ele será capaz de juntá-los e remontar a estrela. Ele se tornará tão poderoso e invencível quanto os maiores conquistadores e ditadores do mundo! Juntamente com todos os membros da nossa Rede, estamos trabalhando para impedi-lo de conquistar tal objetivo, mas ele está sempre um passo à nossa frente! Esse tal de Cortès é um intermediário. Ele está aí para pegar o seu pedaço. Você não pode deixar que isso aconteça!

Fico desnorteado com tais revelações. Eu resmungo:

Capítulo 7

— Mas... meu pingente... a cópia 3D... o senhor Cortès...?

— Hannibal não pode colocar as mãos nele! Encontre uma forma de pegar o pingente de volta o mais rápido possível e saia daí! Esconda-o, fuja, mas antes se desfaça do celular para que eles não consigam mais rastreá-lo. Também não use o seu computador. Ele tem espiões em todos os lugares e... a Rede está sendo... Krrr... Krr... Cortan... Krr... do... B... Sorte...

A linha fica muda de repente. Meu coração está pulando dentro do peito, e começo a ficar bastante assustado... Como vou conseguir recuperar meu pingente e fugir sem ser pego?

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Capítulo 8

— Agora falta pouco! — anuncia Cortès, fechando a porta atrás de mim. — Vamos nos apressar.

Mal consigo acompanhá-lo, cheio por ter me entupido na pulperias da vizinhança, mercadinhos que vendem de tudo que você possa imaginar, principalmente comida, como se eu estivesse comendo para espantar a ansiedade causada pelo o que Battushig me contara. Ainda estou carregando uma sacola de papel engordurada que faz com que Cortès aponte para o escritório, torcendo o nariz de desgosto.

— Deixe isso aqui.

Eu obedeço e corro para ver a máquina terminar a cópia 3D do meu pingente.

— É surpreendente. Depois de depositar o material final na camada superior, o bocal da impressora interrompe sua dança hipnótica e lentamente retrai-se no braço mecânico, que então se dobra, guardando o bocal. Uma placa de resfriamento é aplicada ao objeto quente, fazendo sua temperatura baixar para que possa ser seguramente manuseado. Uma vez que o

Capítulo 8

trabalho da placa termina, as telas de proteção deslizam, revelando a peça finalizada. A máquina altamente sofisticada foi capaz de recriar uma cópia exata do meu pingente; as gravações são incrivelmente precisas, e o material de bronze tem até os mesmos efeitos de desgaste.

Cortès, que eu quase esqueci que existia por tão fascinado que estava observando o final do processo, segura o colar de couro com uma pinça. Com a outra mão, coloca a cópia em um tipo de maleta, abrindo a parte superior para revelar um monte de cédulas de peso empilhadas.

— A cópia é perfeita. Ninguém nunca saberá a diferença. Você ainda pode ir embora com a cópia... e o dinheiro. A universidade receberá uma impressora 3D nos próximos dias.

Minha cabeça está girando. A oferta de Cortès é diabolicamente tentadora. Não consigo nem pensar o que faria com tanto dinheiro. Deve ser uma fortuna... E, ainda assim, o aviso de Battushig soa em meus ouvidos, como a voz da minha consciência, mas vinda do outro lado do mundo. Respiro fundo e olho nos olhos de Cortès.

Capítulo 8

— Primeiramente, gostaria de verificar a qualidade da cópia, comparada ao original.

Cortès suspira irritado, antes de ir buscar a esfera que contém o meu pingente. Ele a abre e coloca o original ao lado da cópia, usando a pinça e a lupa. Decido exagerar:

— Se meu avô descobrir que eu troquei o pingente herdado, vou me meter em confusão. Está bem, você pode guardar a lente de aumento; o pingente é parecido o suficiente. Mas só preciso verificar uma coisa — continuo, pegando os dois objetos.

Peso os dois em minhas palmas, andando pela sala como um macho, tentando imitar o Rambo. Depois me viro para Cortès.

— Tudo bem, estou dentro. Eu topo.

Ando de volta para a mesa, com as costas virada para Cortès, deixo a cópia e, ao mesmo tempo, coloco o original dentro do bolso da minha calça, pego a maleta e estou prestes a sair da sala quando deparo-me cara a cara com uma pistola equipada com silenciador, pronta para atirar.

Capítulo 8

— Você não foi nem um pouco sutil. Ninguém passa a perna no Sr. Hannibal. Volte devagar e coloque o original de volta... Eu odiaria ter que pintar as paredes com seus miolos. Imagine a bagunça.

Posso sentir gotas de suor surgindo nas raízes do meu cabelo. Meus olhos se movem em pânico como um rato numa armadilha, tentando desesperadamente encontrar uma saída. É então que percebo o brilho das câmeras cuidadosamente escondidas nas paredes. Não tinha a menor chance da minha manobra passar despercebida. Então meu cérebro idiota me faz fazer algo insano: salto para a esquerda e jogo a maleta no rosto de Cortès. A arma dispara fazendo um barulho quase inaudível, e a força do impacto me faz largar a maleta, que voa pela sala. Cortès cambaleia e tenta mirar o revólver em mim. Não posso lhe dar essa chance. Cheio de adrenalina, parto para cima e arranco a arma das mãos dele. Pulo para trás instintivamente e miro a pistola nele.

— Você está cometendo um grande erro — diz Cortès.

Capítulo 8

Ando de costas em direção à porta, passo por ela e a fecho. Não tem tranca! Pego uma das poltronas do escritório e uso para bloquear a maçaneta. Percebo que minhas mãos estão tremendo loucamente, minha visão está completamente embaçada e meu sangue está pulsando em minhas têmporas. Fiquei completamente doido, totalmente irracional! Sem parar para pensar, corro o mais rápido que posso, conduzido por um instinto ancestral de sobrevivência... Esbarro em um grupo de espectadores na rua, que me xingam. A voz fina de uma mulher perfura os meus tímpanos:

— Ele tem uma arma! Chamem a polícia!

Eu corro. Fico impressionado com a minha calma na situação em que me encontro. Jogo a arma e meu telefone na primeira lata de lixo que encontro. Preciso correr, me esconder, desaparecer da face da Terra. Sou um fugitivo agora...

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Capítulo 9

Quando viu a fazenda pela primeira vez, vó Helga gritou “Ach, mein Ramundo, os cavalos no seu Pampas são como flores coloridas em um jardim...”

Não sei porque me lembrei desta história da família. Viajei por quilômetros durante a noite, de ônibus, pegando carona, de caminhão e depois a pé, para conseguir voltar à fazenda e colher as melhores flores. Qualquer pessoa sã diria que foi pura loucura. É o primeiro lugar onde eles vão me procurar. As luzes da casa ainda estão acesas. Posso imaginar o quão preocupados meus avós ficariam se a polícia, ou os capachos de Hannibal, viessem avisá-los do meu desaparecimento ou até ameaçá-los pessoalmente. Mas se eu tenho que fugir, não consigo imaginar como faria isso sozinho. Entro sem fazer barulho no quarto de selas, iluminado pela luz da lua. Pego um arreio, surpreso com o peso incomum da sela, depois saio pela noite e sigo até o cercado. Nem preciso assobiar para chamar Tormenta. Ela sentiu minha presença e está relinchando de expectativa, cheia de alegria e impaciência.

Capítulo 9

— Silêncio, Tormenta — eu digo acariciando-a, enquanto ela empina de felicidade —, não estamos brincando. Temos uma viagem muito longa pela frente...

Enquanto coloco a sela nela, percebo que os bolsos estão salientes, cheios de coisas estranhas. Nuvens cobrem a lua, portanto apenas pelo tato descubro dentro deles um cantil de couro e alimentos. Meu avô deve ter adivinhado que eu voltaria... Coloco tudo dentro da minha bolsa antes fechar o cercado. Coloco um pé no estribo e levanto-me para sentar na sela, coberta por uma pele de carneiro grossa. Fico feliz pro ter ficado com a antiga sela do meu avô. É uma verdadeira poltrona. Imagina como deve ter sido para os gaúchos, passando pelo menos de seis a oito horas por dia em seus cavalos, talvez tendo que dormir sob as estrelas quando estavam movendo o gado, principalmente durante o verão. Eles removiam as selas, colocavam-nas estiradas no chão e desdobravam a pele de carneiro para transformá-las em camas surpreendentemente confortáveis. Olho para a fazenda uma última vez, e meus olhos começam a encher de água ao pensar que posso nunca mais ver meus avós.

Capítulo 9

Junto as forças, imagino ser um gaúcho e, envergonhado por estar tão sentimental, impulsiono para que Tormenta comece a trotar. Seguimos em direção ao sul, adentrando na natureza onde nenhum dos homens de Hannibal conseguirá me encontrar. Faço um tipo de oração para as estrelas, pedindo que elas tomem conta dos meus avós. E também de Battushig, do Professor Temudjin e de todos que estão contra os planos maléficos do Hannibal...

Amanhece, e o Sol persegue o índigo do céu, manchando a grama alta com um branco vislumbrante depois um âmbar seco, antes das folhas finalmente tornarem-se um verde sutil. Há quanto tempo eu e Tormenta estamos navegando por este mar de grama infinito? Posso ouvir o barulho de um trator à distância, que logo se soma ao de outros tratores. Não é o galo que anuncia o nascer do sol aqui, mas estas máquinas gigantescas se preparando para cultivar os vastos campos agrícolas. Estas pradarias onde mil cabeças de gado bovino pastam e gradualmente dão lugar à agricultura intensiva, principalmente de soja geneticamente modificada, o maior produto de exportação do país. Campos de trigo, milho e girassol geneticamente modificados são

Capítulo 9

resistentes a todos os inseticidas conhecidos, resultando em uma produtividade máxima por safra. Mas as sementes são estéreis e não podem ser replantadas de um ano para o outro. Elas têm que ser compradas de multinacionais inescrupulosas. Máximo desempenho, claro, mas será que um dia o planeta não nos fará pagar por toda esta agricultura intensiva e de curto prazo? Este pensamento me lembra Tiago que, além de ser antimilitarismo, também faz campanha a favor de todos os tipos de causas ambientais e contra a globalização. Quando ele não está ocupado paquerando, é claro! Eu rio, apesar do desânimo e da solidão que tomam conta de mim, apesar do fato da minha viagem ao desconhecido ser só de ida, o que me impedirá de voltar para tudo o que é importante para mim. Em protesto, Tormenta balança a cabeça de um lado par ao outro e depois dá leves coices no ar, como se estivesse perguntando “E eu? Não sou importante para você?” Impulsiono para que ela volte a caminhar, acariciando o pescoço dela.

— Estamos quase perto do rio, onde você poderá beber água e descansar um pouco. Quem sabe até fazer um lanche? O que me diz?

Capítulo 9

Desta vez, Tormenta concorda com a cabeça, e entrego-lhe as rédeas, confiando nela. Aproveito a oportunidade para esticar-me e massagear meu pescoço que está dolorido, tentando livrar-me do medo do futuro incerto.

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Capítulo 10

Tormenta nos levou até um riacho, perto de onde crescem pés de alfarrobeira e ombùs, as árvores enormes que sobrevivem nas estepes e provêm sombras acolhedoras durante a época mais quente do ano. Tiro a sela e a rédea da égua. Ela bufa e balança a cabeça como um filhote, antes de ir beber do riacho. Tiro a pele de carneiro da sela e estendo-a no chão, entre dois sulcos formados por algarobas, plantas incrivelmente açucaradas que o gado pastoreia. Tormenta ficará encantada. Então esvazio o conteúdo da minha bolsa e dos meus bolsos nela para poder avaliar tudo o que tenho, para descobrir quais são minhas chances de sobreviver nos próximos dias.

Quando desembrulho um dos pacotes que meu avô me deixou, o cheiro delicioso de chimichurri invade meu nariz. Agradecidamente, avanço no enorme bife grelhado, temperado com um molho feito de alho, salsinha, tomates, azeite e tomilho. Devoro-o como um Cro-Magnon. Depois lambo o papel e meus dedos com prazer, longe do olhar de desaprovação que sei que minha avó Helga não hesitaria em me dar... Sentindo-me prazerosamente cheio, volto ao riacho para lavar as mãos e o rosto e encho meu cantil.

Capítulo 10

Faço um breve inventário de tudo o que tenho: um laço, um pedaço grande de pão, um pacote de yerba mate e fósforos. Fazer uma fogueira para ferver um pouco de água para que eu possa tomar um pouco de mate está fora de cogitação. Ainda estou muito perto de casa, e esta não é a hora de ser avistado. Este é um facón, uma faca grande que os gaúchos usam presa no cinto. Coloco-a de volta na bainha, desejando não ter que usá-la. E tem também meu Draeroplane e meu computador. Que contraste louco entre a tradição gaúcha e o mundo da tecnologia, que parecem tão distantes neste momento. Tenho uma vontade enorme de ligar o computador, conversar com Tiago ou voar o Draeroplane como uma pipa, sem se preocupar com o mundo. Olho ressentido para o pedaço de metal brilhando na pele de carneiro, a fonte de azar que me impede de voltar para a minha vida normal. Quero destruí-lo, jogá-lo longe, fazê-lo sumir para sempre. Suspiro profundamente. Sei que é imaturo, mas tenho que admitir que este objeto é um grande fardo. Posso sentir um bafo em minhas costas. Com os ventos batendo na grama e nos galhos ao meu redor, não ouvi Tormenta se aproximar. Tento

Capítulo 10

abraçá-la, mas ela me empurra com a cabeça, fazendo-me cair na pele de carneiro e rir alto.

— Você está certa. Preciso dormir um pouco. Com certeza vou conseguir pensar mais claramente depois disso.

Satisfeita, Tormenta vira as costas e mordisca a grama alta. Meus músculos relaxam-se lentamente até eu pegar no sono.

Sou atormentado por sonhos estranhos: o pasto pega fogo e vira um inferno, alimentado por violentas rajadas de vento. Um rosto de sorriso largo e maléfico curva-se sobre mim, usando uma máscara enfeitada com penas pretas, simbolizando a morte. Meu sangue corre frio e eu acordo me debatendo e gritando. Meus dedos encostam em algo estranhamente macio, e um som agudo quase perfura meu tímpano. Confuso, com o coração batendo forte, percebo que acabara de assustar uma ema, a prima do avestruz, que são tão altas quanto pessoas e cujo nome em guarani significa “aranha grande”. A ave, em pânico, sacode as asas, anda em ziguezague e bate o bico, antes de sair correndo em passos largos. Largo as penas pretas que, acidentalmente, ficaram

Capítulo 10

presas em meus dedos, e elas rodopiam ao vento antes de desaparecerem. Esfrego meus olhos para acordar. O Sol está em seu auge e é hora de seguir viagem. Reúno minhas humildes coisas, espalhadas por todos os lados pela ema curiosa, e xingo alto quando percebo que apenas migalhas sobraram do pedaço de pão. O cantil foi despedaçado e não pode mais ser usado. Felizmente, o computador e o Draeroplane escaparam das garras e do bico da ave. Mas, ao dobrar a pele de carneiro, percebo com espanto que o pingente desapareceu!

Como eu sou idiota! A corda de couro que eu usava como colar ainda está no escritório do comerciante de antiguidades corrupto, em Buenos Aires. Eu deveria ter achado uma maneira de amarrá-lo no pescoço, em vez de deixá-lo solto em meu bolso ou na pele de carneiro no meio dos pampas, onde qualquer um poderia colocar as mãos nele! Loucamente vasculho o chão ao meu redor de quatro, olhando em todos os lugares que foram pisados pela ema. Arranho as mãos e os braços nas moitas de grama dos pampas, que embora magníficas, têm folhas tão afiadas como uma navalha. Nada. Furioso, pego o facón e corto toda a vegetação ao meu redor, numa tentativa de

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Capítulo 11

Este maldito pingente vai acabar comigo. Minha missão é mantê-lo seguro e esperar, enquanto a “Rede” de Battushig procura uma forma de recuperá-lo. E eu ao mesmo tempo, espero. Não só meu mundo caiu por causa deste maldito pedaço de metal, mas também agora desapareceu nos pampas. Se o Professor Temudjin estivesse aqui com seu Drobot, ele poderia sondar o solo com o detector de metal! Eu poderia voar meu Draeroplane pela área, mas ele não aguentaria a força do vento por muito tempo. E se eu ligar meu computador para controlá-lo, os espiões de Hannibal me encontrarão imediatamente. Existe apenas uma coisa que eu posso fazer: colocar fogo na pradaria e depois peneirar as cinzas para tentar encontrá-lo. Se ele sobreviveu a um incêndio na fazenda do meu ancestral Esteban, na Espanha, então o pingente pode certamente sobreviver a outro um século depois! Pego a caixa de fósforos e estou prestes a acender um, mas os valores passados a mim pelos meus avós me detêm, como se um braço invisível tivesse segurado meu ombro. Com todo esse vento batendo, é muito improvável que eu seja capaz de controlar as chamas; se elas espalharem-se para as terras da fazenda, estas

Capítulo 11

também seriam devastadas. E eu arriscaria ser cortado em pedaços pelos fazendeiros que trabalham duro para viver. Grito de raiva e jogo a caixa de fósforos na bolsa. Eu tenho essa bolsa, feita do couro de vaca criada na fazenda do meu avô, desde a escola primária, e ela é praticamente indestrutível. Uma lembrança distante da escola me vem à mente...

Em uma tentativa desesperada de não pagar após ser vencido em um jogo de bolinhas de gude, Antonio Suarez, um dos meninos da minha sala, decidiu que era melhor engolir todas as bolinhas e quase morreu engasgado. O diretor interviu e ajudou-o a cuspir a maioria das bolinhas, mas nunca descobri como ele conseguiu se livrar do resto que ficou preso em seu intestino... Esta lembrança inesperada me coloca no caminho certo, esclarecendo o que deve ter acontecido. A ema provavelmente engoliu o pingente com a mesma voracidade que Antonio engoliu as bolinhas. E se eu não quiser passar o resto da minha vida inspecionando as fezes dela, preciso capturá-la a qualquer custo!

Visto que a ema corre a aproximadamente dezoito quilômetros por hora, podendo alcançar vinte e três

Capítulo 11

quilômetros por hora, é claro que não vou conseguir alcançá-la a pé. Assobio para Tormenta, que está ocupada pastando em algum lugar, e avisto a cabeça dela sobre a grama alta. Ela levanta as orelhas, relincha e galopa em minha direção. Jogo minha bolsa no ombro, pego as rédeas e a sela e estou pronto para caçar aquela ema sem piedade. Espero que não tenha muitas delas. Não sou especialista em emas e não tive tempo de memorizar traços marcantes para diferenciá-la das outras do bando! Livro-me do pessimismo e subo na sela para procurar melhor a ema ladra.

Durante a fuga, a ema deixou um rastro pela vegetação, pisoteando a grama e quebrando vários galhos ao abrir as asas para manter o equilíbrio. Percebo que ela estava correndo em ziguezague, mudando a direção repentinamente, portanto faço Tormenta diminuir a velocidade, senão acabaremos nos perdendo neste labirinto criado pela ave em pânico. Fico de pé nos estribos, protegendo os olhos do sol com as mãos e perscrutando o horizonte. Ali! Algo escuro está se movendo perto daquele ombús. Aperto Tormenta levemente com minhas pernas e ela sai a galope, correndo direto em direção à sombra

Capítulo 11

indefinida. Gostaria de ter guardamontes agora. As abas de couro teriam evitado que eu fosse arranhado e picado por tudo o que cresce por aqui. Minha égua corre adiante bravamente. Logo alcançaremos a ema, debatendo-se como um animal enjaulado embaixo dos galhos dos ombús. Por que ela está se debatendo? Para ser sincero, espero que ela esteja tentando cuspir o pingente, o que me pouparia de ter que abatê-la, por assim dizer, para pegá-lo de volta. Mas quando vejo o que está causando a agitação, envergonho-me do meu pensamento tão egoísta...

Tormenta para de correr. O corpo ensanguentado de outra ema, provavelmente seu companheiro, foi dilacerado e está caído no chão, perto de um ninho. Nada sobrou além de pedaços de cascas de ovos. A ema, em um transe fúnebre, nem nos nota. Eu gentilmente desamarro o laço pendurado na sela, seguro a corda com uma mão e com a outra começo a girar a ponta com o nó. Engulo seco e jogo o laço. Por sorte, ou graças às horas de prática com meu avô, acerto o alvo e puxo forte para capturar a ave. Mas, nesse exato momento, Tormenta empina, relinchando e recuando aterrorizada, fazendo-me cair no chão enquanto ela

Capítulo 11

foge. Confuso, assisto à ema correr loucamente presa ao final da corda, batendo as asas o mais rápido que pode e gritando como se estivesse possuída. Aperto as mãos e enrolo a corda no meu punho. Enquanto tento me levantar, algo cai em cima de mim de um dos galhos da árvore, seu peso forçando meu rosto no chão. Algo que parece como adagas afunda em minhas costas, e um cheiro forte toma conta das minhas narinas... Que ótimo, uma onça-parda!

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Capítulo 12

Hora de entrar em pânico. Estou jogado com o rosto no chão com uma onça em minhas costas, pronta para quebrar meu pescoço com sua mandíbula mortal, antes de apreciar meus melhores cortes. Minha égua desapareceu e eu estou com a ema puxando feito louca o laço, cuja outra ponta está apertada em meu punho, quase deslocando-o. Usando toda a força, tento tirar meu agressor e suas patas das minhas costas, mas só consigo fazê-lo afundar as garras ainda mais na minha carne. O que diabos uma onça está fazendo tão ao norte dos pampas? Elas geralmente se alimentam de ovelhas das fazendas na Patagônia, mas, talvez, as onças também estejam no meio de uma crise e tiveram que deixar seu território para tentar a sorte mais ao norte? Antes de responder esta pergunta hipotética, tenho que encontrar uma forma de tirar a fera de cima de mim, antes que eu vire picadinho, assim como o companheiro da ema!

Posso sentir o bafo quente dela se aproximando da minha nuca. Se eu não fizer algo rápido, acabou para mim. Curvo minhas costas e empurro com os joelhos e antebraços, tentando desestabilizar meu agressor. Ela solta

Capítulo 12

um rugido furioso e afunda as garras em meu trapézio. Péssima ideia. A dor é excruciante. Meus gritos de angústia são abafados pelos tufos de grama pressionados contra o meu rosto. Tudo o que ela precisa fazer é empurrar levemente para quebrar meu pescoço. De repente, escuto um relincho desafiador e sinto as garras da fera, que é distraída pela aproximação da égua, retraindo levemente, e o peso dela passando para as minhas costas. Imagino a cabeça da fera virando em direção ao barulho hostil feito por Tormenta, que veio ao meu resgate apesar de seu medo instintivo de predadores felinos. A onça solta um rugido aterrorizante e sai de cima do meu corpo para lançar-se sobre o novo adversário.

Livre das garras e do peso dela, rolo para o lado e endireito-me o máximo que posso, apoiado nos joelhos, ofegante. A fera lançou-se no pescoço da Tormenta, suas garras enfiadas na carne do peito e do pescoço dela. Minha égua, com os olhos salientes e desequilibrada com o peso do agressor, gira, tentando jogar-se contra o tronco da árvore para remover a onça de suas costas. Mas a onça não solta e, apesar do sacolejar da égua, está pronta para enfiar os caninos no

Capítulo 12

pescoço dela. Estimulado por esta visão horrenda, fico de pé e corro, abrindo minha bolsa e tirando o facón, a grande faca gaúcha. Solto um berro de guerra em direção à fera, apunhalando o corpo dela várias fezes, até que consigo libertar Tormenta de suas garras. A onça desaba no chão. Ajoelho-me e continuo esfaqueando-a, até que sinto Tormenta puxando a gola da minha camisa, protestando. Como se eu estivesse acordando de um pesadelo, finalmente largo a faca, afundo o rosto na crina da Tormenta e dou-lhe um abraço apertado, antes de cair no choro. Inesperadamente fico tonto, minha visão embaça e posso sentir meu corpo desmaiando. Pouco importa o que aconteça agora; minha Tormenta está segura...

* * *

— Olá, Senhor. Está bem?

Hã? Quem perguntou? Minhas pálpebras piscam e eu tento sentar, mas uma dor horrível me contém, fazendo-me cair de volta no que eu suponho ser uma cama ou um colchão.

— Tor... menta, mi caballo? Minha égua?

Capítulo 12

Um sorriso largo ilumina o rosto de uma menina, de pé ao meu lado.

— Ela está bem. Sua égua é incrível. Ela veio até a fazenda buscar ajuda. Meu pai encontrou você inconsciente ao lado da onça. Ele te trouxe pra cá. Que bom que você acordou. Meu nome é Isabel. Qual é o seu nome?

— Me chamo Pablo. Mas a... a ema. Ela escapou?

Minha pergunta é respondida com uma risada alegre. A menina me entrega uma bandeja com panos ensaguentados, gazes e bandagens limpas, além de uma tigela cheia de uma substância branca.

— Gordura de ema. Ótima para curativos! Hahaha!

A risada dela é contagiante, mas sou tomado por um medo terrível quando ela larga a tigela e me entrega um prato cheio de pedaços de carne grelhada.

— Carne de ema. Ótimo para asado !

Capítulo 12

Eu concordo, mas não tenho apetite para churrasco de avestruz.

— Você encontrou um pedaço de metal... dentro?

— Dentro do quê? — diz, confusa.

— Dentro da ema! — digo quase gritando.

A expressão no rosto da menina muda, e ela dá um passo para trás. Hesitante, ela coloca a mão dentro do bolso e tira o pingente. Ela suspira e o entrega com um sorriso triste.

— Posso ficar com ele?

Pego o pingente e examino-o de perto, verificando que é mesmo o meu. Sem dúvidas, é o mesmo pingente amaldiçoado. Agora sou eu quem suspiro. Coloco o pingente dentro do bolso e digo para a menina,

— Não posso, desculpa. Mas gostaria de te dar alguma coisa. Olhe nas minhas coisas e veja se há algo que você queira.

Capítulo 12

Acho que a menina já deve ter se familiarizado com o conteúdo da bolsa, pois sai do quarto e volta com um grande sorriso no rosto.

— Isto. Posso ficar com ele?

Sorrio de volta e digo que sim. Então assisto ela correr pelo quarto, segurando o Draeroplane sobre a cabeça e fazendo barulhos de motor, antes de sair do quarto.

Um dia, espero construir um novo, mais eficiente e, provavelmente, mais parecido com o Drobot do Professor Temudjin. Mas até lá, ao menos meu Draeroplane ajudará uma menina dos pampas a se divertir e a sonhar...

- 13 -

Capítulo 13

Uma estranha videoconferência acontece entre os EUA e a Mongólia.

Massachusetts, EUA.

Battushig:

— Professor Temudjin, Salonqa. Graças às fotos do terceiro fragmento da estrela, o pingente do Pablo, acho que consegui decifrar alguns dos símbolos geométricos gravados no metal. Consegui isolar uma palavra em particular: ΑΘΑΝΑΣΙΑ. Salonqa, você é a especialista em grego antigo. Sabe o que isso significa?

Universidade de Ulan Bator, Mongolia.

A expressão no rosto de Salonqa escurece ao ler em voz alta:

— A-THA-NA-SIA. É pior do que pensávamos. Significa: IMORTALIDADE...

— Então — diz o Professor Temudjin —, se Hannibal colocar as mãos em todos os pedaços da estrela de Alexandre, o Grande, e reconstruir o selo, ele será imortal.

Capítulo 13

— Somente se ele estiver montado em Bucephalus! — retruca Salonqa. — E, até onde sei...

Salonqa é interrompida por uma chamada urgente.

Cairo, Egito.

— Olá, pessoal. Tenho notícias boas e ruins.

O rosto de Leyla aparece na tela. Ela parece animada e com vontade de falar.

— O quê???

— Primeiro a notícia boa. Pablo está vivo.

Leyla manda um pedaço de notícia de um jornal em espanhol. Tem uma foto preta e branca mostrando uma onça morta, rodeada por um grupo de fazendeiros argentinos, todos felizes e orgulhosos. Depois tem uma foto de um jovem deitado de barriga para baixo, seu peito enfaixado e coberto de marcas escuras.

— O artigo basicamente fala sobre um jovem que foi salvo de um ataque de uma

Capítulo 13

onça graças à sua corajosa égua, que foi em busca de ajuda na fazenda desta família. Eles encontraram o jovem e cuidaram dele, e todos os fazendeiros da área dos pampas foram ver a onça. Eles estão muito preocupados com o fato de que onças da Patagônia chegaram até lá. E o John, que está de férias com a família dele em Seattle, nos Estados Unidos, chove o tempo todo lá e...

— Obrigado, Leyla — interrompe Battushig —, podemos presumir que os noticiários locais transmitiram esta informação. Mas a má notícia é que, se você conseguiu encontrar o Pablo, então Hannibal também sabe onde ele está.

— Ele tem que sair de lá imediatamente e encontrar outro lugar para se esconder! — diz Leyla, em pânico. — Como ele vai conseguir sair de lá se está tão machucado? Hannibal já deve ter enviado alguns de seus homens para capturá-lo. Existe alguma chance de chegarmos antes de Hannibal e tirá-lo de lá?

Um silêncio longo sucede as palavras aflitas de Salonqa. Professor Temudjin tosse discretamente.

Capítulo 13

— Parece que não começamos bem... Verei se meus contatos na Argentina podem nos ajudar. Farei algumas ligações e entrarei em contato com você.

- 14 -

Capítulo 14

— Isabel, dejele dormir!

Ironicamente, é a voz de Clara, a irmã mais velha de Isabel, que me acorda do sono. Clara, de olhos grandes, negros e brilhantes, como seu cabelo. Clara, de sorriso radiante. Clara, com uma covinha na bochecha esquerda. Clara, que se move tão graciosamente. Clara, que trançou pedaços de seda e fez uma pulseira para me trazer sorte... A voz alegre dela faz meu coração bater a mil por hora. Evito abrir meus olhos com medo de encontrar seu olhar e ficar vermelho como uma pimenta. Dormirei mais um pouco! Mas Isabel acaricia minha bochecha para que eu abra os olhos.

— Seu rosto está todo arranhado, Pablito! Olhe pela janela, tem uma surpresa!

Estava me sentindo tão bem nesta cama confortável. Estava sonhando que tudo ia ficar bem, que eu receberia os cuidados da Clara... digo, da maravilhosa família Ortega, pelo tempo necessário para que eu finalmente esquecesse Hannibal... Com dificuldade, apoio-me em um cotovelo e viro a cabeça para a janela. O que vejo me dá um bom motivo para levantar.

Capítulo 14

Minha doce Tormenta está lambendo a janela como um lavador de carros. Sorrio para Isabel e Clara, que me ajudam a levantar da cama. Mexo-me com a graciosidade de um elefante marinho de quatro toneladas no gelo da Tierra del Fuego, abafando um gemido de dor quando viro-me para sentar na cama. Espero que minha cabeça pare de girar, antes de levantar-me e dar alguns passos em direção à janela aberta. E agora é a minha vez de ser lavado por Tormenta, batendo as patas e tentando escalar pela janela.

— Acalme-se, minha querida — digo, acariciando a cabeça dela —, estou indo. Vou aí fora, mas vou sair pela porta.

Meu coração dói quando deixo a casa dos Ortega e reúno-me com minha égua. Os ferimentos no pescoço e no peito dela, causados pela onça, estão enfaixados. Nenhum de nós parece bem neste momento.

— O que diabos vocês estão fazendo aí fora? — protesta Senhora Ortega, limpando as mãos cobertas de farinha no avental. — Isabel! — ela continua, nervosa. — Você deixou a égua sair da baia?

Capítulo 14

— Não, mãe!

— Por favor, não brigue com ela, senhora. Tormenta odeia ficar presa; ela aprendeu a abrir portas.

O telefone começa a tocar, e a Senhora Ortega revira os olhos.

— Desde que você cruzou com aquela onça, o telefone não para de tocar! Como diabos vou terminar as minhas empanadas ? Os homens querem ir à caça. Imagina se existem outras onças perambulando lá fora, com todas as crianças correndo pelos pampas!

Enquanto Senhora Ortega volta para casa, reclamando e arrastando Isabel com ela, meu estômago ronca com a ideia de salgados de carne sendo preparados pela minha anfitriã. Mas sou tomado por um pensamento terrível, espantando todos os pensamentos de comida da minha mente. Muitas pessoas já ouviram sobre a minha desventura, e tenho medo de que a história possa chegar aos ouvidos dos homens de Hannibal. E ele é um predador mais perigoso do a onça. Preciso achar uma forma de sair daqui o mais rápido possível!

Capítulo 14

Mas não tem a menor possibilidade de eu conseguir colocar a sela em Tormenta com todos aqueles machucados. Olho ao meu redor para ver se há um carro ou uma van que eu possa pegar emprestada, mas o quintal e o celeiro estão vazios. Não vejo nem mesmo um trator. Então viro-me para Clara, de coração partido.

— Preciso ir embora, mas prometo que voltarei para te ver... vocês todos. Poderia me emprestar um cavalo?

Com Tormenta me olhando torto, coloco a sela em um alazão que Clara me indicou dentro do cercado.

— Alberto, ele é o mais dócil.

Tento esconder de Clara o quanto meus ferimentos estão doendo a cada movimento que faço, carregando a sela, levantando-a, afivelando o cinturão e depois subindo na garupa de Alberto. Agradeço à Clara desajeitadamente, antes de incitar o corcel com as esporas e sair em disparada. É claro que Tormenta me segue, furiosa. Nada a faria ficar para trás. Dou uma última olhada sobre o ombro. Clara está parada na grama alta, cabeça coroada com uma auréola

Capítulo 14

formada pelo seu cabelo longo ao vento... e ela me manda um beijo. Meu coração dispara. Pela primeira vez na vida eu me apaixonei de verdade, e agora tenho que deixar a pessoa que amo para trás! Espero que Hannibal e seus homens não façam nada de mal com Clara e a família dela...

- 15 -

Capítulo 15

Este Alberto é um ótimo cavalo. Tormenta me levou dos pampas, além do Rio Colorado no caminho à Patagônia, até o meu encontro com a onça. Alberto nos levou além do Rio Negro, mais ainda para o sul. Estamos cavalgando há horas, e Alberto ainda não mostra sinais de fadiga nem irritação. Tormenta, pelo contrário, parece exausta. Ela parou de tentar morder o rival, e agora estou preocupado com o sangue encharcando os curativos dela. Decido parar na próxima poça de água e começar a prestar atenção na vegetação mais grossa. Com dificuldade, posso ver as montanhas dos Andes ao oeste, a divisa natural entre a Argentina e o Chile. Ainda não consigo ver onde o litoral irregular encontra-se com o Oceano Atlântico, ao leste. Sinto-me perdido neste remoto deserto central ao norte da Patagônia, gasto pelos ventos atordoantes e constantes do ocidente. Este país é tão vasto. Se eu continuar rumo ao sul, talvez consiga cruzar o Estreito de Magalhães e chegar em Tierra del Fuego em alguns dias. Depois de Ushuaia, cruzarei os arquipélagos gélidos antes de chegar no Cabo Horn, onde terei que me esconder em um navio e ir para um destino desconhecido...

Capítulo 15

Balanço a cabeça violentamente. Acho que o vento está me deixando louco, a menos que seja a solidão infinita destas terras desertas que esteja por trás dos meus sonhos perturbadores. Tierra del Fuego ainda está a quilômetros de distância. Preciso colocar minha cabeça no lugar e concentrar-me no agora. As terras mudaram: não há mais campos cultivados, sinais de habitação nem ruínas de casas abandonadas, mas há picos rochosos por todas as partes. Alberto está nos levando por uma pastagem com arbustos em direção a um pequeno vale com um córrego sinuoso. Na pressa de ir embora, não tive tempo de pegar minha bolsa nem de pegar emprestado uma camisa limpa do senhor Ortega. O sol está queimando cada centímetro da minha pele exposta, portanto desmonto agradecido para me refrescar no córrego e beber água junto com os cavalos. Depois, encho-me de calafates, umas frutinhas violetas. Diz a lenda que, quem provar da fruta, voltará à Patagônia. Encontro até alguns Pan del indio, pão indígena, um tipo de cogumelo que cresce em árvores e parece bolinhas amarelas. Eles não são muito gostosos, mas me sinto revitalizado!

Capítulo 15

De repente, Alberto começa a relinchar baixinho. As orelhas dele estão abaixadas, ele bate a pata, tenso como a corda de um arco, antes de sair disparado. Tormenta solta um bufo de curiosidade misturado com ansiedade mas, ao contrário de Alberto, não entra em pânico. Ela já deve estar ciente do perigo que fez Alberto perder a cabeça. Não sei de onde o perigo está vindo.

Então, vejo uma sombra no chão, antes de reconhecer o zumbido. A uns nove metros acima da nossa cabeça, lutando contra o vento, um drone triangular examina o terreno, enviando imagens para o piloto. Vejo outros pontos no céu. Devem ser outros drones. Estou prestes a correr em pânico como Alberto, quando o drone pousa a alguns metros de mim. Tormenta, que está acostumada com meu Draeroplane, chega mais perto para cheirá-lo. Como um drone deste tamanho não seria capaz de carregar nenhum explosivo, mesmo que pequeno, decido seguir o exemplo de Tormenta e chegar mais perto. Lembra-me do modelo que eles estão construindo na universidade, tanto que não fico surpreso ao ouvir a voz de Tiago saindo de um dos alto-falantes.

Capítulo 15

— Olá, amigo! Estamos quase sem bateria, portanto escute com atenção. Vá em direção ao leste até encontrar uma estrada pavimentada ao longo do litoral, no Golfo de São Matias. Existem alguns caminhões de transporte de soja da Duarte, a empresa do meu pai, percorrendo o caminho entre Santo Antônio do Oeste e a Península Valdés à sua procura. Eles não podem dirigir sobre as rochas. Você pode agradecer ao Professor Temudjin. Ele colocou o departamento inteiro de Novas Tecnologias da universidade à sua procura! Apresse-se... Bzzz... Crrr...

O alto-falante fica mudo. Uma rajada de vento balança o drone, virando-o de costas, como uma tartaruga. Tormenta começa a bater a pata ao meu lado, como se estivesse me encorajando a montar e cavalgar sem sela. Mas levando em consideração o estado dos curativos dela, decido continuar a pé. Acaricio a testa dela, puxando a cabeça em minha direção para beijá-la.

— Quando você estiver melhor, minha querida. Por enquanto, vou correndo. Você pode me seguir.

Capítulo 15

Contando com a pouca força que tenho sobrando, respiro fundo e continuo ao leste, tentando não torcer meus tornozelos neste estepe montanhoso. Se o caminhão for grande o suficiente, talvez Tormenta poderá pegar carona também. Então nós dois sairemos deste inferno que o pingente nos meteu!

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Capítulo 16

Tropeço e rolo ofegante por um barranco cheio de pedras e coberto de arbustos espinhosos. É como se estivéssemos navegando em ondas de pedra, um casco gigantesco pré-histórico que sobe, desce e sobe de novo, mas que agora só desce. No horizonte, posso ver as ondas e espumas do Oceano Atlântico, batendo na costa. Se eu mantiver o ritmo, logo alcançarei a estrada. Olho para trás. Tormenta está se arrastando de cabeça baixa; as patas, normalmente tão confiantes, hesitando no cascalho traiçoeiro. Mal posso esperar para tirá-la daqui e tratar de seus ferimentos...

O terreno instável agora dá lugar a um tipo de planalto, como se um dos topos do casco tivesse sido cortado com um bisturi. Forço-me a subir o aclive, esperando ter uma visão melhor da costa lá de cima. Subo no morro, mas em vez de uma vista agradável, deparo-me com um pequeno avião. Não, não é o avião que pertenceu a Saint-Exupéry, que abriu novas rotas para a linha aérea Aeroposta Argentina, na Patagônia, no início dos anos 30. É um jato particular. Um homem em um terno de linho e usando um chapéu-panamá está à minha espera.

Capítulo 16

— Você me fez esperar, jovenzinho.

Reconheço a voz do homem que me telefonou em Buenos Aires depois da aula do Professor Temudjin. Hannibal! Meu coração para e meus olhos disparam à procura de uma chance de escapar. Percebo uma estrada deserta à distância. Acho que posso ver um caminhão chegando do norte. Se eu pular deste morro e correr como um guanaco, a lhama argentina, talvez eu consiga...

— Nem pense nisto — interrompe Hannibal, com um tom frio. — Meu co-piloto também é um ótimo franco atirador, e eu também sei atirar — diz, movendo a aba da jaqueta levemente. — Coloque o pingente no chão e afaste-se devagar.

Pela janela do jato, percebo o cano longo e fino de uma arma apontando para mim. Depois de toda essa jornada, ter que entregar meu pingente para este monstro me enche de raiva.

— Estou esperando — resmunga Hannibal.

Capítulo 16

Vencido, coloco a mão no bolso para pegar o pedaço de metal. De repente, Tormenta surge no morro. Hannibal pula e, surpreso, dá um passo para trás. Eu também não ouvi o som dos cascos, abafado pelo vento. Ele se recupera rapidamente e saca a arma.

— Coloque o pingente no chão imediatamente ou eu mato o cavalo!

Tormenta, com as orelhas abaixadas, mostrando os dentes, músculos tensionados, está preparada para avançar em Hannibal. Jogo o pingente no chão, perto de Hannibal, antes de correr em direção a Tormenta, meus braços abertos e sussurrando “ei, garota”, tentando acalmá-la. Quando agarro a crina e coloco meus braços em volta do pescoço para segurá-la, Hannibal já pegou o pingente e sentou-se no jato. A porta se fecha e o jato começa a decolar. Apesar do barulho dos motores, posso ouvir o som da buzina vindo lá de baixo. Ando para o outro lado do morro. Há um caminhão estacionado ao longo da estrada. Levanto um punho com raiva em direção ao jato e grito. Se ao menos tivesse chegado aqui alguns minutos mais cedo, poderia ter

Capítulo 16

desaparecido de novo e levado o pingente para longe de Hannibal! Neste momento, ouço um zunido fino e percebo o sol refletindo em algo metálico em uma das janelas do jato. Como um robô, viro em tempo de ver as patas da Tormenta dobrando-se embaixo dela, enquanto ela desaba no chão, numa poça de sangue que cresce a cada segundo... Nãããooo!!!

* * *

O mesmo desespero cobre os membros da Rede, espalhados por todo o mundo.

— Professor Temudjin, Hannibal já tinha o pingente. Ele não precisava atirar no cavalo de Pablo!

— Cometer tamanha crueldade... Esse homem tem uma alma terrivelmente sombria e perversa. Se ele tornar-se poderoso e imortal, ninguém poderá pará-lo! Quem sabe quais planos maléficos ele está tramando?

— E agora ele tem, pelo menos, três dos cinco fragmentos da estrela!

— É uma corrida contra o tempo. Temos que encontrar os dois pedaços restantes antes dele.

Temos alguma chance?

— Podemos tentar...

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