Cavalos lendários

Amira, a Princesa do Egito

Altaïr
Amira
Tormenta
Zaldia
Bucephalus

Conteúdo

Prólogo

Prólogo

A febre me consome, assim como a humilhação. Estou sozinha nesta terra egípcia, para onde as ordens do general Ptolomeu me trouxeram. O que aconteceu com meus companheiros de guerra? Eu deixei o campo de batalha às margens do rio Hidaspes após a ordem de retirada dada pelo general. Eu vi Alexandre, o Grande, cair da garupa de Bucephalus enquanto choviam flechas em cima dele, atiradas pelos arqueiros posicionados em árvores e elefantes. Eu vi muitos, muitos bárbaros gregos, macedônios, persas e indianos morrerem nestas florestas monstruosas, onde apenas a chuva fluía mais que sangue. Quem foram os mais atrozes nesta carnificina? Nós, soldados de Alexandre, ou os bárbaros indianos?

Nos sete anos desde que deixamos a Macedônia, conquistando estes reinos distantes um a um, ele galopou à frente de suas tropas, em cima de seu fiel corcel Bucephalus, inspirando-nos com força e coragem, prometendo-nos ouro e glória antes de cada luta, com soldados e cavaleiros gritando seu nome e jurando superarem a si próprios. Este homem, que resistiu a tantos golpes em combates quanto todos os veteranos juntos, conseguiu nos

Prólogo

fazer superar nossos limites. Graças a ele, nós nos tornaríamos heróis, coroados com honra e glória, adorados por todos. Nossas famílias se tornariam ricas, e nossas memórias seriam honradas por muito tempo, mesmo após a nossa morte. Era maravilhoso lutar por um rei como Alexandre!

Mas, após enfrentarmos os ventos gelados do Hindu Kush, as florestas hostis inundadas pela chuva e infestadas por cobras mortais, e a febre causada pelas águas imundas, muitos de nós queriam voltar. Ainda posso vê-lo, nosso rei Alexandre, montado em seu admirável cavalo preto, incitando-nos a continuar lutando, apesar do cansaço e medo que corroía nossas entranhas. Nós o acompanhamos, mais uma vez. Para o nosso azar.

Não encontramos ouro nem glória, apenas morte e desolação. Após a morte do nosso rei, o general Ptolomeu assumiu o controle. Ele encarregou-me com uma missão que me levaria para longe do campo de batalha por muito tempo.

Eu galopei em direção ao oeste sem parar. Mas havia outra batalha acontecendo em minha cabeça; o objeto dado a mim por Ptolomeu começara a controlar minha mente.

Prólogo

As vozes dos seres invisíveis ordenando-me a voltar para o meu rei, acusando-me de traição, ameaçando-me com os piores tormentos de Hades. À noite, o sono me iludia, como cobras horríveis de nove cabeças em meu caminho. Eu tentava cortar-lhes as cabeças, mas era em vão; elas cresciam e multiplicavam-se infinitamente. Cansada e faminta, cavalguei adiante, passando pelas pirâmides de Heliópolis que protegiam os restos mortais dos faraós deste país, em seu local de descanso eterno. As divindades de pedra pareciam fazer a guarda destas montanhas do deserto construídas pelo homem. Eu continuei rumo a oeste, evitando a companhia de viajantes e aldeãos. Foi neste vale que meu fiel cavalo faleceu, mordido por uma enorme cobra. Eu o enterrei com remorso e tentei continuar a pé, mas logo sucumbi à exaustão, ao Sol ardente, à febre.

Na noite seguinte, um cavalo branco veio até mim, intimando que eu o deveria seguir. Ele se parecia exatamente com o meu falecido cavalo, e eu estava encantada por reunir-me a ele em Hades. Mas, quando senti o bafo quente em meu rosto, percebi que minha hora ainda não havia chegado.

Prólogo

Levantei-me, apoiando contra o seu flanco, e o segui até este abrigo, onde lentamente recuperei as forças, graças a uma fonte de água, às frutas e às pequenas presas do vale.

Não sou a primeira a ocupar este local. Observando estes desenhos de um antigo povo, acredito que eles gravaram nas pedras orações aos deuses com cabeças de animais, os mesmos que protegem as pirâmides. Não sei o motivo deles terem abandonado o abrigo, mas deixaram as talhadeiras e os pigmentos para trás, além de pergaminhos de papiro, planta que cresce em abundância perto de rios, que é onde eu começo a contar a minha história.

Mas, logo, o objeto amaldiçoado começa a torturar-me mais uma vez, apesar da proteção dos deuses egípcios. Então eu tomei a decisão vergonhosa de separar-me dele, enquanto ainda estava lúcida. Mas eu precisa ter certeza de que ele não cairia nas mãos de ninguém. Lembrei-me do artifício de Odisseu durante a conquista da cidade de Troia, que nem mesmo o ilustre Aquiles fora capaz de tomar. Ele mandou construir um enorme cavalo de madeira, e dentro dele esconderam-se soldados de elite. O cavalo foi

Prólogo

deixado em frente à cidade como uma oferenda, e rumores foram espalhados de que os gregos tinham abandonado o cerco de Troia. Ao amanhecer, os troianos descobriram o cavalo e o levaram para dentro da cidade. Enquanto celebravam a vitória, os guerreiros de elite saíram de dentro do cavalo de madeira como cobras silenciosas e abriram os portões de Troia. A frota grega, que estava escondida, retornou para tomar Troia e colocá-la ao chão. O sábio Odisseu disse,

— Os segredos mais bem guardados são escondidos à vista.

Pergaminhos de papiro encontrados em 2014 numa caverna do Vale Natron, no Egito. Provavelmente escritos em 320 AC pelo tenente Demetrios do exército de Alexandre, o Grande.

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Capítulo 1

— Leyla, querida, o caramelo está pronto?

A voz gentil da Tia Wadiha arranca-me do devaneio. Deixo escapar um gritinho ao descobrir que o conteúdo da panela está começando a queimar. Rapidamente desligo o gás e, usando a ponta do indicador, deixo cair uma gota do líquido quente na borda de uma xícara. Se a gota escorrer, ainda não está pronto. Se endurecer imediatamente, então o caramelo está pronto. E, no caso, é o que acontece. Rapidamente, espremo suco de limão sobre a mistura e mexo vigorosamente com uma colher de madeira. Ergo a colher várias vezes, com fios cor de mel se esticando. Ufa! Consegui salvar esta mistura preciosa, este “caramelo”, que falsamente sugere doçura. Na verdade, é uma cera de açúcar para remoção de pelos, destinada aos clientes do salão de beleza da minha tia Wadiha!

Masa'a al-khair! Boa noite, moças, sua torturadora favorita chegou!

Quando entro no cômodo principal do salão, as clientes se agitam, cacarejando como galinhas assustadas pela

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chegada de uma raposa faminta. É o ritual da noite de quinta-feira: enfeitar-se para o final de semana, que no Egito cai na sexta-feira e no sábado. Mãos recentemente feitas e unhas pintadas dançam ao ritmo dos risos, e leves maldições chovem em minha cabeça, enquanto entrego o caramelo para as esteticistas.

— Como pode a menina mais bonita do Cairo causar-me tamanha angústia? — ri Oum Alim, sacudindo seus pneus de gordura, do tamanho da fortuna e do amor de seu marido.

— Beleza requer um pouco de sofrimento, Habibti! — ri Sitt Dounia. — Deixe a pequena e paz!

— É verdade que você tem um namorado? — sussurra Patil Papazian, tão discreta quanto uma explosão, com os olhos virando devido à ânsia pela fofoca.

Lá vem o interrogatório... Por que a tia Wadiha precisa contar a minha vida para as clientes dela? Posso sentir-me ficando vermelha como uma pimenta!

Capítulo 1

— O seu príncipe encantado é bonito? Ele é rico? Ele é americano, né? Espero que não seja divorciado! Como ele fez o pedido de casamento? Foi romântico? Ele tem apartamento próprio? Quantos filhos você quer ter? ...

Quantos filhos? Não é o que está acontecendo entre eu e John! Tudo o que fez foi me ajudar com uma pesquisa on-line, já que ele é técnico em informática e eu sou uma inútil. Ele me convidou para almoçar no campus e ofereceu uma carona de volta naquele calhambeque depois da aula... Ele queria me levar pra Alexandria hoje à noite! Eu recusei, é claro! Quem ele pensa que é? Um príncipe encantado montado em seu cavalo branco, aparecendo do nada para cortar a cabeça de um dragão horrível com um único golpe de seu sabre? Até nos meus sonhos de criança eu derrubava o príncipe encantado do cavalo e saía montada no corcel em uma jornada incrível e infinita. Nunca precisei de príncipe encantado para viver e não vai ser agora que vou precisar!

Numa tentativa de mudar o assunto, pergunto às clientes o que elas gostariam de consolo

Capítulo 1

após o ordálio: limonada, chá, café ou apenas um copo de água, acompanhado dos famosos “beijinhos” da minha tia. Pequenas porções, para que elas não se sintam tão culpadas, de baklava, mahalabiya, basbousa e qatayef, melado grosso de flores de laranja, extremamente gorduroso e doce...

Ocupo-me na cozinha preparando as bandejas de doces, enquanto fico de olho no relógio da parede. Suspiro. Ainda falta uma hora para o salão fechar e, depois, liberdade, aí vou eu! Ainda assim, aprecio a atmosfera do salão, este pacífico refúgio onde muçulmanas, drusas, cristãs e judias adotaram um acordo tácito de ignorar diferenças religiosas a fim de desfrutarem o convívio como mulheres. Se ao menos nossos líderes, os cínicos, os tiranos, os fanáticos e os sexistas, pudessem provar de tal sabedoria, como o mundo seria melhor! Eu afasto a ideia utópica e mando um beijo imaginário para minha maravilhosa tia; ela merece o Prêmio Nobel da Paz! Sou muito grata por ela ter me convencido a trabalhar no salão depois de ter terminado meus estudos na Universidade Americana do Cairo. Graças aos generosos baksheeshes, gorjetas dadas pelas clientes, somados ao meu salário

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e à minha bolsa de estudos, minha educação custou quase nada aos meus pais. E posso estudar o que sempre sonhei: arqueologia e egiptologia, a ciência que permite decifrar os segredos da extraordinária civilização do Egito. Quem disse que estes eram trabalhos só para homens?

Finalmente, o dia e a semana chegam ao fim. O salão foi limpo, polido e está brilhando como uma moeda nova. Tiro minha blusa branca, coloco uma calça, uma camiseta e tênis, e amarro meu cabelo em um coque para escondê-lo embaixo do capacete. Fico feliz por não ter muitas curvas no corpo e poder me passar por menino; nem todos os egípcios são tão mente aberta e tolerantes como a minha família. Devo mencionar que minha mãe é uma muçulmana que casou com um americano católico apaixonado por ornitologia e, a irmã dela, a tia Wadiha, casou com um copta, um cristão ortodoxo da primeira igreja egípcia, fundada nos anos 40 pelo apóstolo Marcos. Não deve ter sido fácil nos tempos deles, mas eles mantiveram-se firme, e tenho orgulho deles. Também vou me casar por amor se, um dia, conhecer o homem dos meus sonhos! Mas, até que este dia hipotético chegue, aproveitarei minha liberdade como um

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menino! E calça comprida é muito melhor para andar de moto ou cavalo!

Minha tia coloca um pacote grande embrulhado em papel alumínio dentro da minha mochila. É a marmita com os doces que as clientes não profanaram, explica minha tia. Mas eu sei que ela sempre faz uma quantidade astronômica nas quintas-feiras, só para engordar a sobrinha dela. Eu dou um abraço carinhoso na minha generosa tia, que me lembra de ter cuidado na estrada, e vou para o quintal ligar minha moto velha e pouco confiável. Sim, foi John que a consertou, visto que ele é um mecânico tão bom quanto é um cientista da computação, mas vamos parar de falar sobre ele!

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Capítulo 2

Eu deslizo entre as latas de lixo do prédio e, assim que passo pelo portão e chego na estrada, sou bombardeada pela movimentação, pelos cheiros e pelos barulhos da cidade. Bem-vindos à combinação indescritível de emoção e lentidão que são as ruas de Cairo. Eu costuro por entre os pedestres com dificuldade, muitos dos quais estão dando uma última olhada nas vitrines, antes do anoitecer e do chamado à oração. Uma multidão densa e diversa, vestida com uma mistura de roupas tradicionais e do ocidente. Meu olhar desliza pelas janelas das lojas mais tradicionais, coexistindo ao lado de boutiques modernas e ocidentalizadas. Posso sentir o cheiro apetitoso vindo das barracas de falafel, uma massa de grão-de-bico frita e servida com molho de alho, limão e creme de gergelim. Ahouas, cafés onde os homens vão para fumar sheesha, uma versão egípcia do narguilé, e para jogar partidas exaltadas de gamão, batendo com força as peças no tabuleiro. As calçadas são cheias de barracas com fitas de videocassete, CDs, DVDs e versões piratas das maiores marcas americanas e europeias, assim como peixeiros, comerciantes de condimentos e vendedores de utensílios

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de cozinha de estanho. Por pouco, evito um vendedor despejando um balde de água em frente à janela dele para abaixar a poeira. O engraxante agachado por perto grita indignado por causa dos respingos de lama na bancada de trabalho dele; ele terá que começar o trabalho todo de novo. Mas, assim que discussão começa entre os dois homens, um cliente chama o vendedor. O sorriso doce dele reaparece, e ele esquece do acidente imediatamente. Eu finalmente consigo chegar na estrada onde um taxista está buzinando feito um louco, tentando fazer com que uma carroça puxada por um burro que bloqueia a rua se mova. Movimento-me o melhor que posso, por pouco evitando ser esmagada por um caminhão soltando fumaça escura, para aproximar-me de um cruzamento cheio de veículos de todos os anos e, finalmente, chegar em uma avenida mais larga, onde posso aumentar a velocidade.

Ah, não! O trânsito parou, como um monte de moscas presas em um pote de mel. Os policiais podem gesticular e assoprar os apitos o mais alto que quiserem; o trânsito nas noites de quinta-feira no Cairo são um pesadelo. Vou pegar um caminho diferente, mesmo que seja menos seguro; o caminho que passa pela Tahrir Square, a

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tão famosa Praça da Libertação, que tem sido o foco de tanta discussão desde a revolução egípcia de 2011...

A revolução mexeu bastante comigo, assim como com muitos jovens da minha geração. Eu tinha apenas 14 anos quando descobri este vento de liberdade que fez nosso coração palpitar, colocando fogo em mentes e ruas, terminando em conflitos sangrentos, repressão e violência de todos os lados. O sabor amargo da lembrança do “retorno à normalidade” nos ensinou a sermos cautelosos. Será que arriscar levar uma surra é a melhor maneira de ser ouvido? Nós levamos às rádios e redes sociais e, apesar da desilusão, ainda há esperança de conseguirmos fazer deste mundo um lugar melhor.

Yallah! Sai da frente, idiota!

Viajando nessa ideia, nem percebi que o fluxo de veículos começara a andar de novo, tão devagar quanto caramelo morno. As buzinas impacientes e os gestos agressivos acompanhando os gritos dos motoristas fazem-me arrancar em disparada, e começo a costurar por entre as fileiras de carros. Pego um desvio entre as ruelas que

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limitam os canais do Nilo, sob as sacadas cheias de vasos de flores; o cheiro de lodo e peixe competindo com rosas e jasmim. Mas, pelo menos, aqui é menos movimentado, sem a fumaça dos escapamentos. Então, chego nas ruas principais que me levam para o sudeste da cidade. De lá, sigo em direção ao norte e pego a estrada para Alexandria. É uma verdadeira gymkhana juntar-me à equipe de Jean-Yves Empereur, o famoso arqueólogo francês que está liderando as escavações de emergência bem no centro da cidade de Alexandria. Além das maravilhosas descobertas submarinas feitas perto do antigo farol, com todos os vestígios da era ptolemaica, Alexandria ainda guarda muitos segredos. A cidade moderna foi construída em cima da antiga. Assim, escavações só podem ser realizadas quando as velhas são demolidas, e novas estradas e pontes são feitas ou renovadas. Será que, um dia, encontraremos o túmulo de Alexandre, o Grande???

Aqui em Alexandria, em 283 AC, logo antes da morte dele, seu ex-general grego, Ptolomeu, que viria a se tornar o pai de uma longa dinastia de faraós que terminou com a impetuosa Cleópatra em 30 AC, completou a construção do túmulo de Alexandre, o

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Grande. Ele fez com que os vestígios mumificados do conquistador fossem repatriados de Mênfis, para dar-lhe um enterro digno de sua glória. Mas, entre conflitos, incêndios, terremotos devastadores e a ganância de ladrões de sepulturas e caçadores de tesouro sem escrúpulos fascinados pelo Egito, ninguém nunca encontrou o famoso túmulo. E se eu o encontrasse???

Enfim, chega de sonhar. Como sou apenas uma estagiária, e já é uma sorte grande ter sido aceita na última escavação, é bem provável que eu passe horas peneirando terra, esperando encontrar fragmentos de cerâmica ou um osso de galinha que evidencie uma refeição de antigamente. Mas na arqueologia é preciso ter tanta paciência quanto paixão, e você tem que começar coletando pistas que parecem tão insignificantes quanto lixo fossilizado.

Virando a esquina de um conjunto de prédios velhos, as pirâmides monumentais de Gizé aparecem à minha frente. Quéops, Quéfren e Miquerinos, os túmulos majestosos de reis, rainhas e grandes nomes da era faraônica, sem mencionar a famosa esfinge, tudo o que restou da civilização egípcia de 4500 anos

Capítulo 2

atrás. Apesar de conhecê-las muito bem, um arrepio percorre a minha espinha. Foi quando as vi pela primeira vez que decidi virar arqueóloga.

Quando criança, sentia-me como Howard Carter descobrindo o túmulo de Tutancámon e o fabuloso tesouro no Vale dos Reis, no começo do século XX. E fiz meus pais gritarem ao verem o jardim destruído e as paredes cobertas de hieróglifos desajeitados e grudentos...

Como ainda não podem admirar minhas futuras descobertas, em vez disso, turistas de todo o mundo se juntam em volta das pirâmides. E inúmeros ônibus amontoam-se no estacionamento, com ondas de pessoas saindo deles, sendo incomodadas por vendedores de lembrancinhas. Eu sei o quanto o turismo é importante para a economia do meu país, mas, às vezes, sonho com ruas desertas. Finalmente chego na rodovia do deserto, a estrada que conecta Cairo e Alexandria, e, tomando cuidado com os motoristas impacientes para aproveitar o fim de semana, acelero com toda a força...

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Capítulo 3

A rodovia do deserto... É tudo, menos deserta! A noite vai chegar e tenho que me esforçar para manter longe dos olhos o brilho dos faróis, teoricamente de acordo com o código de estradas egípcio. Dirijo por quase 100 quilômetros, e o trânsito continua denso em ambas as direções. Os habitantes de Cairo estão seguindo para a praia, enquanto os ônibus trazem turistas para a capital. No Egito, os turistas congregam-se no vale do Nilo, entre Abu Simbel, Luxor, Cairo e Alexandria, para visitarem pirâmides, templos, túmulos e restos dos nossos antigos faraós. Outros preferem mergulhar no Mar Vermelho ou subir o caminho místico do Monte Sinai. Mas noventa e quatro por cento do terreno é ocupado por desertos, o líbio ao oeste e o árabe ao leste. E eles possuem muitos tesouros desconhecidos. Ah, não! Não me diga que tem outro engarrafamento! Desta vez, chega de ziguezaguear entre os canos de escape nauseantes e o lixo jogado na estrada pelos motoristas. Vou pegar as ruelas de Wadi El Natrun e dirigir paralelamente à rodovia, e volto para ela mais à frente. Embora as ruas não sejam tão boas, pelo menos parece que estou andando!

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Após algumas manobras duvidosas em minha moto, pego a estrada estreita em direção ao noroeste, para os picos rochosos que riscam as dunas como espinhas dorsais de dinossauros enterrados. Há poucos carros por aqui e eu consigo andar um pouco mais rápido. Mas não muito, porque um grupo de cabras pode muito bem decidir atravessar a rua. Ou, talvez, o asfalto, velho como o próprio Herodes, esconda um buraco ou outro. Ou pedras podem ter caído, bloqueando a estrada. Ou, talvez, um cão pastor comece a correr em minha direção sem avisar... ah, os prazeres das estradas tranquilas. Eu rio ao ver os faróis dos carros parados na rodovia e acelero levemente para zombar deles, quando, de repente, o motor da minha moto começa a engasgar. Ah, não! John, espero que o seu trabalho não me deixe na mão! Por pouco, evito ser jogada por cima da moto. Começo a me recuperar, quando uma buzina ensurdecedora me joga de volta para a beira da estrada. Evito ser esmagada por uma caminhonete cheia de melancias vindo em minha direção, com os faróis quebrados, buzinando alto, indignado. Então, tudo acontece em câmera lenta, como a cena de um filme de terror. Sinto que estou sendo jogada para fora da estrada enquanto o motor tosse pela última vez, antes de pifar e cortar a luz dos faróis. Coloco meus pés no chão e freio com toda a força para evitar que o peso da moto me leve para o abismo que suponho estar abaixo de mim. Mas de nada adianta; as rodas da moto deslizam, arrastando-me para o penhasco. Instintivamente, pulo para o lado, deixando que a moto caia, e rolo morro abaixo até a perder a consciência...

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Sou acordada pelo frio. Eu gemo, tentando puxar as cobertas, mas tudo ao meu redor é duro e desconfortável. Onde estou? Eu me sento, enquanto as imagens do acidente voltam à minha mente. Tirando a dor no joelho, pareço estar inteira; minha mochila amorteceu a queda. Desajeitada, retiro a mochila e o capacete e olho a minha volta onde aterrissei. Este afloramento rochoso, coberto de arbustos espinhosos, impediu a minha queda. Acima, a luz prateada da Lua cria sombras na parede de pedra de quinze metros de altura. Sem chance de sair daqui por ela. Abaixo, o declive é bem menos íngreme. Se eu tiver que me mover, vai ter que ser por baixo. E acho que não preciso me preocupar em consertar o monte de sucata que vejo lá embaixo, que costumava ser a minha moto.

Por enquanto, estou viva e preciso avisar à equipe de escavação que eu sofri... um pequeno atraso, e que vou juntar-me a eles... Droga, não tenho a menor ideia de que horas são, só que está de noite. Bem, junto-me a eles assim que possível. Abro a mochila para pegar meu telefone celular. Ah. Se eu achei que minha bolsa tinha ajudado a amortecer a minha queda,

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o mesmo não se pode dizer do que estava dentro dela. A garrafa de água explodiu e os doces não passam de uma papa de migalhas e alumínio, junto com pedaços de vidro, plástico e aparelhos quebrados. Recupero o cartão do telefone, limpo com a camiseta e coloco no bolso da calça. Bem, parece que vou ter que me virar sem telefone. Bem-vinda à era pré-histórica! Continuo vasculhando minha mochila. Ah! A lanterna ainda funciona. Ótimo! Mas minhas roupas não têm muita serventia. Meu bloco de anotações está oleoso e cheio de lama, mas, após uma ideia, pego uma caneta e escrevo... não um testamento, mas um bilhete dizendo quem sou e quem deve ser notificado caso eu não seja encontrada viva. Bem, suponho que seja um tipo de testamento. Droga, eu não costumo ser tão mórbida assim! Qual é! Eu vou ficar bem. Decido deixar a mochila e o capacete para trás com o bilhete visível. Vou tentar encontrar uma forma de voltar à estrada e pegar carona até Alexandria, mesmo que seja em uma carroça puxada por burro!

Na luz fria da Lua, desço mancando com cuidado o declive, evitando a vegetação e as pedras rolando sob meus sapatos. Vou economizar a bateria da lanterna ao

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máximo. Estou no centro de algum tipo de desfiladeiro, um antigo leito fluvial ressecado, e espero que me leve a algum lugar. Eu paro e escuto; acho que posso ouvir um eco distante, como um sussurro. Se há alguém por perto, com certeza me mostrarão o caminho de volta para a estrada principal. Reanimada com a ideia, eu me apresso. Mas, quanto mais perto chego do sussurro, mais a minha esperança de ser alguém diminui. Parece o murmúrio fraco de um córrego, principalmente onde a vegetação do deserto, desesperada por uma gota d’água, vai ficando mais densa. Pelo menos vou poder beber alguma coisa. Empurro alguns galhos de acácia e paro estupefata. Pensei ter visto algo branco no meio da vegetação. Meu coração dispara, pisco os olhos tentando entender a estranha imagem sem ser vista.

É uma Jalabiya? A tradicional túnica egípcia sem a gola nem cinto? E, se for, o que alguém estaria fazendo neste lugar à noite? Não, é algo maior, imóvel, alerta e ciente da minha presença. De repente, a forma estremece e, num salto afobado, debanda pelos arbustos com medo. Posso ouvir o barulho dos cascos no chão pedregoso, indo para longe, antes de parar de novo. É um

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cavalo branco! Apesar de ter levado um susto, e da situação precária em que me encontro neste desfiladeiro isolado, a sorte de encontrar este cavalo faz com que meu coração se encha de alegria. Tenho apenas uma coisa em mente: tenho que encontrá-lo!

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Capítulo 4

Não, encontrá-LA. Esta égua selvagem, tão sorrateira quanto a Lua. Eu ando devagar, movendo caniços, ramos de tamarga e capim. Para criar coragem e familiarizar a égua com a minha presença, sussurro uma canção de ninar egípcia, cuja melodia eu me lembro, mesmo sem saber a letra. Então improviso palavras de conforto para tranquilizar a égua. Será que vai dar certo?

Ela está decidida a brincar de esconde-esconde. Toda vez que chego perto dela, seus músculos começam a tremer embaixo da pele, e ela caminha para longe; mas posso perceber que está prestando atenção. Será que a curiosidade dela vai superar o seu medo? Ainda sussurrando, chego mais perto e, desta vez, consigo ficar a três metros dela. Embaixo do incrível peso de seu topete, a luz da lua reflete em seus olhos grandes e pretos, enquanto suas narinas tremem e suas orelhas rotacionam, indecisamente, como birutas ao vento. Instintivamente, paro para não interromper este momento mágico. Continuo minha melodia serenamente, admirando a elegância da égua, seu contorno côncavo com a cauda levantada, seus músculos fortes e com uma crina longa e

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sedosa. Ela tem o aspecto e a nobreza de um puro-sangue árabe egípcio, altamente cobiçado no mundo das corridas. Uma Amira, uma verdadeira princesa. O que ela está fazendo sozinha neste lugar hostil? Será que ela fugiu de um haras? Será que foi maltratada?

Esta filha da Lua está pronta para fugir ao menor movimento suspeito, ao mais leve ruído de folhas, embora, ocasionalmente, curvando o pescoço, abaixe a cabeça até o chão. Se ao menos eu tivesse uma maçã ou um cubo de açúcar para oferecer, talvez ela chegasse mais perto. Lentamente, e sem tirar os olhos dela, coloco a mão no bolso de trás da calça. Quem sabe não tenho alguma guloseima turca amassada ou um sachê de açúcar que peguei universidade sem nem saber por quê? Mas este simples movimento é o suficiente para despertar o medo ancestral de predadores, e a égua corre de novo, orelhas voltadas para trás, fugindo desconfiada. Acho que ela não voltará e fico triste como uma criança, assim como quando você tem que acordar de um sonho maravilhoso.

Eu deixo escapar um profundo suspiro, estico meus membros e tento voltar à realidade, que

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é muito menos fascinante. É noite e encontro-me sem nenhuma forma de comunicação ou transporte, em algum lugar dos topos rochosos do Wadi El Natrun, famoso pelo alto conteúdo de sódio, o sal antisséptico e absorvente, essencial para mumificação no antigo Egito. Hoje em dia, é usado na fabricação de vidro. Os cristais são colhidos duas vezes ao ano nas costas dos lagos salgados, nas partes mais baixas do vale. Considero seguir em direção aos lagos para procurar ajuda mas, se fosse a época do ano em que o sódio é colhido, eu veria as luzes dos acampamentos dos trabalhadores recrutados para este trabalho desafiador. Mas a única luz que vejo vindo dos lagos é o reflexo das estrelas. Então vou ter que escalar a lateral da montanha e tentar achar algum tipo de trilha, ou terei que continuar seguindo o leito seco do rio e rezar para encontrar uma saída. Como eu nunca fui muito boa em escaladas, escolho seguir o leito do rio. Se uma correnteza já percorreu este leito para alcançar as águas do Nilo e desaguar no Mediterrâneo, eu também vou chegar no mar... Vamos lá!

Não posso mais continuar. Estou morrendo de sede. Sinto como se estivesse andando por

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horas e em círculo. Droga! Tropeço pela centésima vez e caio de cara no chão, como um pão caindo do forno. Não sei se é resultado do acidente, mas é como se uma represa rompesse, e lágrimas de desânimo me dominam completamente. Quase quero ficar aqui, jogada no chão, chorando, esperando a morte. Sinto como se estivesse clamando, pedindo ajuda por meio das lágrimas para meus pais, minha tia Wadiha, John e Amira, quando o som dos galhos estalando por perto arrancam-me do estado depressivo, causando uma descarga de adrenalina. Algo se aproxima por trás de mim. E para. Aproxima-se de novo e cheira a minha mão. Meu medo é substituído por uma grande alegria. Através do cabelo que cobre meus olhos, reconheço Amira, a égua branca, e sinto sua respiração e crina longa tocando minha mão, meu braço. Ela chega mais perto, empurrando-me com a ponta do nariz e deixando escapar um relincho, como se estivesse tentando me acordar e me levantar. Eu me mexo e ela recua. Então, o mais suavemente possível, rolo para o lado e me levanto, enquanto ela me observa ansiosa. Mas não foge. Sussurro gentilmente para ela, levantando devagar para não a assustar. Mas ao chegar mais perto, ela balança a cabeça e dá alguns passos para trás.

Capítulo 4

— Não se vá, Amira, por favor!

Ela me observa por bastante tempo, sem se mexer, antes de virar-se e dar um passo para frente, e depois outro. Ela vira a cabeça em minha direção, batendo o casco. Acho que ela está esperando que eu a siga. Então é o que eu faço. Ela avança e espera, e eu a sigo da melhor forma possível. Para onde está me levando?

Não leva muito tempo até eu começar a ouvir o som de água escoando de novo, provocando-me. Estou com tanta sede. Deve ser uma ilusão, já que a vegetação está tão seca e escassa. A folhagem parece mais morcegos me arranhando do que uma massagem com óleo depois de uma sauna... Eu fecho os olhos para concentrar-me no som da água ao longe, gotejando numa rocha, ricocheteando gota a gota. O som fica mais profundo, mais gorgolejante. Amira aparenta estar impaciente. Ela bate a pata, dizendo para me mover. Agora ela está me guiando ao longo de uma vala estreita, deixando o leito do rio para terminar entre as rochas, em direção a uma enorme pedra, lisa e rodeada por arbustos. Eu paro espantada. Como vou passar por esta pedra?

Capítulo 4

Amira bate a pata no chão impacientemente, gira e vai para trás de mim, empurrando-me com a cabeça para que eu ande. Eu obedeço, avançando pela vala, observando que o com da água vai ficando cada vez mais alto. Eu me viro para Amira, percebendo que ela me guiou até uma nascente. Mas ela está de longe, balançando a cabeça, antes de relinchar suavemente e ir embora pela direção oposta. Agora é por sua conta, ela parece dizer.

Estou em frente à pedra, mas a nascente permanece escondida. Decido escalar um pouco e colocar meu ouvido na parede, já que o som da água gotejando é muito mais forte aqui. Ofegante, passo por cima de algumas plantas, aproximo-me da parede rochosa e prendo meus dedos numa fenda. Enquanto eu me estico para ficar nas pontas dos pés e colocar meu ouvido na parede, escorrego e caio com mãos e joelhos num chão de raízes duras, espinhos e pedras soltas. A dor no joelho retorna, somada à ardência em minhas palmas. Eu culpo minha falta de jeito, enquanto busco a parede para me levantar com apenas uma mão. Mas, além de alguns arbustos espinhosos, minha mão não encontra nada, e eu caio de cabeça na escuridão...

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Capítulo 5

Parece que caí numa caverna. Não consigo ver o fim dela. Agora é a hora de ligar a lanterna. Fico de quatro e deslizo cuidadosamente por uma passagem rochosa, guiada pelo som hipnótico da água invisível. O sangue pulsa em minhas têmporas, e meus sentidos ficaram aguçados por conta da expectativa e da apreensão. O que encontrarei no fundo desta caverna? Um ninho de cobras venenosas, uma ninhada de linces do deserto, cuja mãe vai me rasgar em pedaços com seus caninos e garras, para defender e alimentar seus filhotes... ou, talvez, uma múmia ornamentada com amuletos, pronta para lançar uma maldição em mim?

Depois de rastejar pelo túnel por nove metros, o teto para de arranhar a minha cabeça e se torna elevado rapidamente. Consigo caminhar curvada. A pedra é tão espessa, que parece que estou trancada em um refrigerador a cinco graus. Está bastante frio e eu começo a tremer embaixo das minhas roupas molhadas de suor. O declive se torna mais íngreme e me leva a uma outra caverna onde consigo ficar de pé. Estou ofegante como um boi velho, mais murcha do que uma múmia, e meus músculos parecem que vão

Capítulo 5

entrar em colapso. Mas, pelo menos, ainda não dei de cara com nada desagradável. Vasculho as paredes ao meu redor, usando o feixe de luz da minha lanterna e vejo que a pedra à minha direita possui pequenas correntes de água correndo sobre ela e escoando em direção a uma poça natural. A água que flui sobre as extremidades goteja na parte posterior da poça, vazando através das rochas, onde não posso segui-la. Eu me ajoelho, junto as mãos e provo a água, esperando não ser extremamente salgada por causa do sódio nem poluída por fertilizantes químicos. Mas é água doce, sem nenhum sabor suspeito, já que foi completamente filtrada ao passar pela rocha. Então eu a bebo com vontade, agradecida ao incrível cavalo branco que reconheceu a minha necessidade e me trouxe até esta nascente. Como eu gostaria de vê-la mais uma vez!

Agora que me reidratei, posso sair por onde entrei e continuar o caminho de volta à civilização. Ei, algo se mexeu embaixo dos meus pés, fazendo barulho contra uma rocha. Parece um anel, unido a outro... É uma corrente de metal! Será possível que outro humano ousou entrar nesta caverna antes de mim?

Capítulo 5

Sigo em frente, traçando caminho junto à corrente, puxando-a entre meus dedos como um terço e tomando cuidado para não me machucar com as farpas enferrujadas. A ponta da corrente está presa na rocha, perto da poça. Viro e sigo a corrente de volta até a outra ponta, curiosa para saber onde ela vai me levar. Bam! Obviamente, nesta escuridão tão densa quanto sopa de grão-de-bico, eu não poderia ter adivinhado que teria que engatinhar de novo! Esfrego minha testa e deito no chão como uma cobra para que eu possa deslizar por debaixo desta nova arcada. Continuo com cuidado, já que o declive começa a aumentar levemente, e faço algumas curvas que me deixam desorientada. Termino em uma passagem onde posso ficar de pé de novo. Eu me estico e estalo as costas, e meu antebraço bate em alguma coisa atrás de mim. Descubro um pedaço de madeira, preso no que parece ser um recipiente de metal fixado na rocha. Eu me aproximo da ponta do objeto e sinto cheiro de queimado; deve ser uma tocha. Sigo o caminho da corrente e continuo explorando. Pedra, pedra e mais pedra... e, então, o fim da corrente, presa na parede. Continuo olhando ao redor. Pedra, pedra e pedra de novo... Oh! Madeira! Ela é quase plana, uma placa de pé, e há outras placas... será uma porta?

Capítulo 5

Procuro por uma maçaneta para abrir a porta misteriosa, antes de perceber que estas placas parecem ter sido colocadas aqui sem serem presas a nada... para esconder ou lacrar algo atrás dela? Movo-as o mais sutilmente possível, revelando um corredor rochoso e estreito. Entro cuidadosamente. O corredor me cerca por todos os lados, mas consigo ficar de pé. Parece ser mais uniforme do que as passagens por onde passei até agora, sem dúvida criada por alguém... Não tenho escolha senão continuar em frente, meu coração batendo forte...

Meu pé bate em algo no caminho. Algum tipo de objeto plano. Adiante, acima, outro... uma escada esculpida na rocha. Subo os degraus com muito cuidado, até bater em algo que parece ser outra porta. Empurro gentilmente para ver se ela abre, mas a madeira está tão podre que cede imediatamente. Uma pilha de pedaços de tábuas e objetos não identificados cai no chão, fazendo um barulho infernal. Uma poeira com cheiro de mofo invade minhas narinas, fazendo-me dar passos para trás em pânico, espirrando loucamente. Um pensamento terrível me vem à cabeça: será que acabei de cometer um

Capítulo 5

pecado arqueológico imperdoável? E se quebrei um sarcófago de madeira, destruindo a múmia junto? Eu teria profanado um local sagrado e destruído uma grande descoberta!

Uma vez que o estrondo termina e os objetos param de cair no chão, tento recuperar a compostura. Minha alma aspirante a arqueóloga deixou-se levar com a ideia de descobrir múmias, decoradas com objetos funerários preciosos e incríveis. Sistematicamente, abro caminho e continuo subindo, avaliando o que encontro. Parecem ser pedaços de tecido, dobrados há muito tempo, que tendem a se desintegrar... Eu os coloco para o lado. Aqui, pedaços de um objeto provavelmente de argila. Ali, um cálice de madeira quebrado. Por enquanto, nada de ossos, faixas, vasos canópicos nem amuletos. Apenas alguns itens do dia a dia. Alguém claramente viveu aqui no passado. Que segredos descobrirei mais para dentro?

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Capítulo 6

Sinto-me como Howard Carter. É 26 de novembro de 1922, e eu quero gritar de desespero. Após um grande número de escavações fracassadas no Vale dos Reis, a temporada final das escavações programadas acaba hoje devido à falta de financiamento. Quando, de repente, um camponês grita como se estivesse possuído pelo Sha, o temido demônio de cabeça de chacal. A picareta do camponês acaba de atingir um bloco de pedra. Ele ajoelha-se, limpa a areia do bloco e descobre um segundo bloco abaixo... Estes são os degraus que levam ao intocado e eterno local de descanso de Tutancâmon, junto com seu sarcófago de ouro e seus tesouros ilesos.

Hmm... Duvido que exibiremos os resultados da minha descoberta “incrível” no Museu Egípcio do Cairo, no Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque, no Museu Britânico de Londres ou no Louvre de Paris. Deve ser o abrigo de um antigo camponês ou pastor, julgando pelos móveis simples desta caverna minúscula. Um colchão de palha trançada se desfazendo, um banco que se quebra em pedaços quando eu o empurro, e um jarro de louça que se despedaça quando eu o chuto

Capítulo 6

acidentalmente. Sou tão idiota! Deixo escapar um suspiro de frustração tão grande quanto a Pirâmide de Quéops e empurro os restos do banco e do jarro contra a parede usando o pé. Rio ao pensar em uma Indiana Leyla Jones, descobrindo esta caverna um dia; ela ao menos não tropeçaria nesses entulhos!

Mal posso esperar para sair desta caverna. Quando eu contar minha desaventura para meus colegas e até para o John, vamos rir bastante e beber um chá bem preto e doce. O dia em que meu nome se tornará uma lenda (que eu espero superar até a de Alexandre, o Grande) claramente não é hoje. Suspiro e estou prestes a descer as escadas quando meu coração dispara. Uma cobra ameaçadora surge da escuridão, com sua cabeça faminta erguendo-se do corpo imenso. Grito de terror e recuo para o fundo da caverna. Estou sem saída!

Com meu coração batendo forte, observo as escamas da cobra deslizando sobre os degraus de pedra. Quando ela entrar na caverna, terei que enfrentá-la, matá-la antes que ela consiga me picar. Infelizmente, parece ser uma naja egípcia pelo grande pescoço em formato de disco. A cobra egípcia pode

Capítulo 6

alcançar mais de dois metros e meio de comprimento e tem uma neurotoxina formidável. Se ela afundar as presas em mim, primeiro meus músculos respiratórios serão paralisados e depois...

Eu não quero morrer! Vasculho as paredes da caverna com a lanterna, procurando algo para me defender ou atacar a naja. Duvido que eu seja mais rápida que ela, ainda mais sem nenhuma arma. Eu precisaria de um porrete, mas não vejo nada do tipo por perto. Talvez uma manta pesada para jogar em cima dela, cegando-a e dando-me tempo de escapar pela escada. Mas a pilha de retalhos de algodão não vai funcionar... Olho ao redor ansiosamente. Preciso achar um jeito de me livrar do monstro. E rápido!

Algo se moveu, ou talvez tenha sido a sombra das irregularidades na rocha. Aponto minha tocha na direção, tremendo. Se a naja veio com a sua família, do bisavô até os primos de segundo grau, eu estou ferrada!

Dou um passo atrás, pego um pedaço do jarro que quebrei e seguro firmemente como uma adaga. Eu resmungo,

Capítulo 6

— T... T... Tem alguém aí?

É claro que ninguém responde. O que eu estava esperando? Estou com tanto medo que, pela primeira vez, queria que o príncipe encantado aparecesse do nada, montado em seu cavalo branco para cortar a cabeça da naja com um golpe certeiro de seu sabre! Aperto o punho e ando em direção à sombra que dança na rocha. Um instinto, sem dúvida um supersticioso, faz-me golpear a sombra, caso seja algo vivo. Minha adaga provisória não passa pela rocha, mas sim por uma tapeçaria pendurada da mesma cor. Ao remover o fragmento, deixo-o em pedaços. Será que existe uma saída escondida atrás desta tapeçaria?

Olho em direção à escada, ainda sem sinal de cobra. Rapidamente, empurro a tapeçaria esfarrapada para o lado e sigo em frente, na esperança de ser uma saída, mas o que descubro me deixa muda. Certamente não vou encontrar nenhuma ajuda terrestre se continuar, mas, talvez, alguma ajuda divina... se ao menos eu tivesse fé. Visto que escondido atrás desta cortina está um dos mais incríveis templos do Egito antigo! Uma caverna

Capítulo 6

com as paredes cobertas de baixos-relevos pintados, representando os antigos deuses. Sob os raios do disco solar divino Rá, reconheço Hórus, a encarnação do céu e do Sol com cabeça de falcão; Anúbis, o deus com cabeça de chacal que protege os mortos; Tot, com cabeça de íbis, o deus da Lua e protetor dos escribas, e muitos outros, basicamente pintados em cenas onde oferendas estavam sendo feitas... É de tirar o fôlego!

Um destes deuses parece estar em evidência, devido ao número de oferendas feitas a ele, como jarras de óleo, flores de lótus, alqueires de grãos, perfumes e muito mais. Mas ele é representado por uma simples múmia humana, de pé e vestindo o casquete e o peitoral dos escribas... Ptah, claro, padroeiro dos artistas e, com isso, também do “sânkh”, aquele que dá vida, o escultor que criou esta incrível ilustração... Então, meu olhar é atraído por uma mulher com corpo e rosto sublimes e que está usando uma coroa; ela me lembra alguém... Decifro freneticamente os hieróglifos gravados sobre ela...

“Nefertiti”, que significa “a mais bela chegou”...

Capítulo 6

Minhas mãos não param de tremer. Não posso acreditar no que descobri. Seria este o cartucho de Nefertiti, a rainha cuja beleza era lendária??? Procuro a ilustração do marido dela, Aquenáton, o faraó ao lado de quem ela reinou, há mais de 3300 anos. Mas ele não está nos desenhos. É então que decifro os pequenos hieróglifos embaixo dos pés da rainha, indicando o nome da serva de Ptah, Ptahmose...

Minha mente dispara, imaginando a história de amor impossível entre um humilde escultor e a mais inacessível das rainhas, quando, de repente, a luz da minha tocha começa a mostrar sinais de cansaço, trazendo-me de volta à realidade. Sou a única pessoa que pode mostrar ao mundo esta descoberta histórica. Mas o que acontecerá se eu morrer por causa da mordida de uma cobra? Eu guardo a lanterna, agora inútil, coloco o pedaço de jarro no bolso da minha calça e arranco o que sobrou da cortina. Respirando profundamente, marcho na escuridão em direção à escada, pronta para cegar o animal, antes de apunhalá-lo ferozmente...

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Capítulo 7

Uma luz surreal e oscilante penetra por uma fenda na rocha, lançando um feixe de luz na face da cobra imóvel... Ela não se mexeu nem um pouco! Balanço a cabeça para espantar o sentimento de incompreensão que está tomando conta de mim, enquanto este fenômeno estranho acontece diante dos meus olhos. Como se estivesse hipnotizada, vejo a luz intensificar-se lentamente, movendo pelo corpo da cobra, tornando-se laranja, depois amarela e desaparecendo, transformando a figura do animal em escuridão. Minhas pernas desabam repentinamente, e encontro-me sentada nos degraus, dominada por emoções. Esta luz deve ser a de um novo dia, e a cobra, uma gravura estampada na parede da rocha ao lado da escadaria. Mas como pode uma pintura criar uma impressão tão realística e fazer-me acreditar que a cobra estava viva? O artista que a pintou deve ter percebido este fenômeno e o usou para transmitir uma mensagem para quem passasse por aqui. Mas qual seria? E por que uma cobra?

Eu deixo cair a cortina e o fragmento de jarro, agora inúteis, e lentamente desço os degraus em direção à cobra inofensiva. Em religiões monoteístas,

Capítulo 7

a cobra é um símbolo de pecado. Você só tem que olhar o que aconteceu com Adão e Eva quando eles ouviram às tentações da serpente... Mas, em outras crenças, cobras representam imortalidade, infinito, as forças subjacentes que levam à criação da vida... Para os antigos gregos, o Ouroboros, a serpente que morde a própria cauda, era o símbolo da autofertilização e renovação constante. Para os egípcios, eles veneravam Ureu, a cobra sagrada, como protetora dos faraós. Assim como os fazendeiros, já que as cobras eliminavam insetos e camundongos. Esta mensagem é um pouco subliminar para mim. Como vou desvendá-la? Diante da cobra, olhando para mim com olhos verdes, dourados e ameaçadores, uma lenda egípcia que me assustava quando criança volta à minha memória. É a lenda de uma serpente má, a mestre das forças hostis se rebelando contra a ordem mundial, a terrível Apófis...

Cada manhã, a imensa cobra Apófis atacava o bote celestial de Rá, o deus do Sol, na esperança de impedi-lo de alcançar seu destino. Ísis usou toda sua magia para roubar os sentidos de Apófis e para desorientá-la. O gato de Rá, Bastet, cortou-a em pedaços com uma grande faca.

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Atacou-a com seu arpão. Os defensores foram vitoriosos e o horizonte pintou-se de vermelho com o sangue da cobra. Entretanto, Apófis nunca deixou de revidar. Ao meio-dia, ela bebia toda a água do rio celestial para acabar com a proteção do deus do Sol. Mas, felizmente, os seguidores de Rá forçaram-na a cuspir o líquido precioso e, à noite, o sangue da cobra mais uma vez inundava o horizonte.

Acredito que exista uma mensagem universal por trás desta lenda do tempo dos faraós. Se Apófis é constantemente derrotada mas nunca completamente destruída, então sua existência deve ser parte do universo. Isso nos lembra da fragilidade da ordem universal, que é necessária para continuar seguindo em ordem e evitar que as forças do Caos vençam. Ah, estou começando a filosofar, e esse não é o meu tipo! De qualquer forma, imaginar Rá mandando Apófis de volta para as sombras me acalma e, na luz pálida e sombria que agora entra pela fenda do teto da caverna, eu escalo a escada, determinada a deixar o abrigo de volta como era. Não por preocupação, como quando lustro o salão de beleza da tia Wadiha na hora de fechar, mas em respeito aos princípios arqueológicos. Quando

Capítulo 7

os “chefes” vierem examinar a minha descoberta, encontrarão o lugar parecendo o máximo possível como quando entrei. Vou tentar colocar a cortina no lugar.

Quando rasguei a cortina, lembro que algumas pedras caíram no chão. Na hora, eu estava pensando apenas na cobra e não como eu colocaria a cortina de volta no lugar. Olho mais de perto o pedaço que ainda está no lugar para entender como a cortina fora pendurada. Ao mesmo tempo, corro a mão sobre o pendente na entrada da arcada e o pedaço pendurado nele. Parece que foi feita uma fenda na rocha, o final da cortina foi colocado sobre ela, e espigões feitos de pedra e madeira foram martelados na fenda com um martelo. Ei, parece que existe um vão embaixo da cortina, no final da arcada... Passo minha mão embaixo da cortina e descubro um tipo de abertura na rocha. Se eu tiver sorte, encontrarei as três ferramentes usadas por sânkhs: um martelo de madeira, uma talhadeira de cobre e um pedra polidora. Fico na ponta dos pés e vasculho o interior da abertura. Mas, rapidamente, entendo que a textura do que encontro não servirá para talhar nada. Estou frustrada, mas por curiosidade pego o que encontro mesmo assim.

Capítulo 7

Eita! É um rolo de pergaminhos ou manuscritos, com as bordas levemente deterioradas.

Estou ciente de que você nunca deve manipular este tipo de material sem tomar muito cuidado, incluindo umedecê-lo e esticá-lo antes, mas estou muito emocionada para desenrolar as folhas encrespadas. As primeiras letras desbotadas parecem gregas, grego antigo eu acho. Droga, por que eu aprendi a ler hieróglifos e não grego!? Esquece, vou deixar para os peritos. Hesitante, coloco o rolo de volta na abertura, dobro a cortina no pé da arcada e deixo a caverna olhando uma última vez para Rá, o deus do Sol, esperando que ele ilumine meu caminho.

Volto pelo caminho que entrei. Primeiro de pé, depois de quatro e deslizando feito uma cobra, imitando inversamente a transformação de um bebê em criança e, depois, em adulto...

Quando finalmente saio da série de passagens e posso ficar de pé de novo, sou recebida por uma alvorada triunfante. Respiro fundo e saúdo o novo despertar do vale. Depois da escuridão sufocante das passagens, festejo as cores do vale; cores que são

Capítulo 7

amareladas, ocreadas e de pedras e folhagem. Olhando para cima, posso ver uma cordilheira iluminada pelo Sol nascente. Será que tenho força o suficiente para escalar até tão longe, só para ter ideia de onde estou? Preciso achar a estrada que passa pelos mosteiros cópticos ainda em funcionamento. Quando chegar lá, encontrarei uma forma de entrar em contato com o time arqueológico em Alexandria; eles devem estar preocupados em saber o que aconteceu com a estagiária deles. E vou contar à universidade e ao meu professor de arqueologia sobre a minha descoberta. Eles com certeza saberão qual serviço nacional de antiguidades eu precisarei contactar para revelar e proteger este local histórico. E vou pedir para John vir me buscar em seu calhambeque. E, talvez, os bons monges me oferecerão algo para comer!

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Capítulo 8

Começo minha lenta subida em direção à cordilheira quando um relincho quebra o silêncio das montanhas, até agora só interrompido pelos passos e zunidos minúsculos dos insetos. Eu paro e olho ao redor, mas não consigo ver nada através das cortinas de acácias e das formações rochosas. Começo a cantar uma canção de ninar de novo, esperando atrair a égua para perto, e outro relincho quebra o silêncio de novo. Sigo em direção ao som, de olho no menor movimento de pedras embaixo dos meus pés, já que o mínimo sinal de vegetação farfalha abruptamente. E minha paciência é recompensada quando a encontro na clareira, parte do corpo escondido por uma rocha. Era como se ela estivesse esperando por mim, como se ela soubesse que eu viria, Amira, minha princesa. Tremendo, ela dá alguns passos para o lado e eu percebo que ela está mancando da perna traseira esquerda. Decido não me mexer, para dar tempo de criar confiança. Ela hesita, gira, dá alguns passos para trás, mas minha melodia lhe dá coragem para chegar mais perto, pouco a pouco. Fecho meus olhos. Ela está bem perto de mim agora. A respiração dela faz cócegas na palma da minha mão estendida. Eu

Capítulo 8

sinto o bigode na ponta do nariz dela enquanto me cheira. Ela se afasta e se aproxima de novo. – “Ai!” – Ela está mastigando o meu cabelo, desfazendo o que resta do meu coque, e eu me esforço para não me mexer enquanto ela respira no meu pescoço novamente. Hm, acho que ela está lambendo a calda doce grudada na minha camiseta e eu tento não me mover, apesar das cócegas. Gradualmente, abro meus olhos e encontro o olhar dela, examinando-me com curiosidade. Lentamente, coloco minha mão em cima do seu pescoço e acaricio gentilmente. Ela treme, mas não foge. Crio coragem e acaricio sua bochecha, sua testa, a ponta de seu nariz. Ela abaixa o pescoço levemente e me dá uma cabeçada, aflita, antes de dar um passo para trás e me observar do canto do olho, com a cabeça esticada para o céu.

— Não vou te machucar, Amira, princesa da Lua. Venha cá — digo, estendendo a mão de novo.

Continuo murmurando e, depois de um tempo, ela balança a cabeça, aproxima-se de novo e deixa que eu a acaricie.

Capítulo 8

— Muito bem, você é muito boazinha — elogio-a acariciando-lhe o pescoço.

Pouco a pouco, movo meus dedos pelas costas dela, pelos flancos, deixando uma das mãos em sua garupa, a outra movendo em direção à perna esquerda traseira; o casco dela mal toca o chão. Não consigo sentir nenhum ferimento ou inchaço até tocar em sua quartela, fazendo-a dobrar a perna e movê-la para longe de mim, ficando de guarda de novo. Começo a encorajá-la mais uma vez. Ela volta para mim e eu a adulo repetidamente, até que ela dobra o joelho e permite-me segurar sua quartela e levantar seu casco. Depois de algumas tentativas, ela concorda em descansar a quartela em minha mão. Acho que ninguém nunca colocou ferraduras nela. Percebo uma pedra afiada presa em sua sola, no meio da ranilha. Gentilmente, consigo arrancar a pedra. A égua dá um coice inesperado, fazendo-me largar o casco. Ela pula e galopa em círculo antes de começar a trotar, surpresa pelo fato de conseguir caminhar sem mancar. Ela retorna para cheirar meu pescoço e eu acaricio suas costas, feliz em ter ajudado. Então ela corre de novo e trota em direção às

Capítulo 8

árvores, virando-se em minha direção, como se estivesse convidando-me a segui-la. Ela avança, esperando que eu a alcance de vez em quando, até sairmos da área com árvores e pedras que parece ser o território dela. Então ela vai para trás de mim, empurrando-me para seguir em frente. Após passar uma barreira de galhos de tamargueira, encontro-me na margem de um deserto de terra e pequenas rochas. Quando a encorajo a continuar, ela joga a cabeça, andando para trás. E então ela empina inesperadamente, como se estivesse dizendo adeus, antes de sair trotando de volta para seu território. Com o coração partido eu a observo ir embora, até que sumir de visão. Deixo escapar um longo suspiro e pergunto-me o porquê de ela ter me guiado até então, apenas para me abandonar agora. Eu viro-me para o panorama à minha frente e solto um grito de surpresa, uma vez que posso ver traços de habitação humana ao longe. Deve ser o vale dos mosteiros!

Lembro-me que meu tio Maroun, marido da tia Wadiha, contou-me sobre os mosteiros cópticos neste vale. Milhares de cristãos, fugindo da perseguição dos romanos durante os séculos III e IV, procuraram refúgio aqui no Wadi el

Capítulo 8

Natrun, incluindo Maria, José e o bebê Jesus, que estavam fugindo dos soldados do rei Herodes antes de continuarem o caminho para o Cairo. Este vale tornou-se berço do monaquismo cristão e, nas cavernas que dominam o deserto, os exilados sobreviveram alimentando-se dos recursos escassos de alguns poucos oásis da área. Mais tarde, construíram mosteiros para praticarem a fé deles em segredo. Das inúmeras invasões até a Peste Negra do século XIV, os mosteiros, de alguma forma, mantiveram-se fortes. Apenas quatro estão ativos hoje em dia, e quase 200 monges ainda vivem neles, seguindo os passos do eremitas do Velho Testamento e vindo para o deserto para meditarem e rezarem... Do leste para o oeste, há o São Macário (Abu Maqar), São Bishoy, o Mosteiro Sírio (Del el-Suryan) e o Mosteiro de al-Baramus (Deir al-Baramus). Eles estão localizados a algumas milhas de distância um do outro, mas cada mosteiro é autossuficiente, escondido atrás de paredes fortificadas que os protegeram de ataques durante a Idade Média.

Ando pela areia ocreosa entremeada por rochas, que me separa do mosteiro mais próximo. Então aproximo-me de um tipo de vilarejo, onde começo a notar

Capítulo 8

jardins e construções de tijolos. Ando pelas ruas estreitas, que logo me levam à entrada do mosteiro, onde um silêncio absoluto reina. Hesito por um momento, antes de continuar em frente pelo pátio deserto, com palmeiras enfileiradas. Por que não há sinal de vida? Espera aí! Se me lembro bem, quando não estão ocupados com atividades religiosas, eles não passam seu tempo trabalhando, tecendo esteiras e cestas, prensando óleo de oliva, cultivando hortas e fazendo outras atividades? Talvez eles estejam rezando e eu cheguei na hora errada. Mas preciso encontrar alguém que possa me ajudar!

Ando mais pelo pátio. Identifico cinco capelas. Uma destas construções chama a minha atenção, e eu vou até ela. Estou chocada com a beleza simples de sua arquitetura, com arcos e cúpulas arredondadas de altura moderada, de aparência suave, da mesma cor da areia do deserto. Passo pela porta de madeira aberta e entro num local onde raios de luz penetram por pequenas aberturas nas paredes e nas cúpulas. Admiro as paredes redondas e os tetos decorados com pinturas religiosas. Embora não seja religiosa, sou dominada pela espiritualidade poderosa exalada por este lugar...

Capítulo 8

Então reparo em um par de sandálias masculinas ao lado da entrada, cobertas de poeira. Por respeito ao que parece ser um costume local, tiro meus sapatos e ando devagar em direção ao fundo da igreja. E é então que percebo, aos pés de um largo altar de pedra, uma pessoa no chão. Deve ser o monge dono das sandálias. Ele está prostrado no chão frio, feito os primeiros cristãos. Não posso deixar de notar que esta posição de prece é quase a mesma praticada pelos muçulmanos. Eu não ouso incomodá-lo, portanto fico a alguns metros de distância, esperando ele se levantar. Neste momento, meu estômago vazio decide roncar, quebrando o silêncio da igreja e assustando o pobre monge. Fico com tanta vergonha que não sei o que fazer!

— Com... Com licença, Abouna, não queria interromper...”

O monge estica-se, levanta e faz o sinal da cruz diante da grande cruz cóptica e das imagens no altar, antes de virar-se lentamente em minha direção. Com seu manto longo e escuro e sua barba negra e espessa, apenas seus olhos verdes e ferventes sobressaem abaixo das sobrancelhas, nesta escuridão.

Capítulo 8

— Visitas ao São Bishoy são proibidas durante a quaresma. Você não viu a placa na entrada?”

Sinto-me tão mal como se tivesse sido perguntada uma questão em sala de aula e não tivesse estudado a lição... Tento segurar a enchente de lágrimas e resmungo,

— É... é que...

O monge balança a cabeça e segue em direção a saída.

— Vou mostrar-lhe a saída. Você deve esperar até o final da quaresma para voltar.

— Mas padre, Abouna, sofri um acidente de moto, andei por quilômetros, estou sem dormir, descobri uma caverna com pinturas de hieróglifos e deuses egípcios, devem ser extremamente antigas, há também manuscritos velhos e eu tenho que contar à minha universidade, mas quebrei meu telefone!

Com estas palavras, o monge ficou tenso, virou e me perfurou com seus olhos verdes estranhos, manchados de ouro.

— Você não contou a ninguém?

Balanço minha cabeça negativamente, e meu estômago ronca de novo, enquanto minhas pernas quase se entregam. Então o monge vem em minha direção e, obviamente relutante, agarra meu cotovelo e me ajuda a caminhar.

— Eu sou o Irmão Zacharias. Levarei você para o refeitório onde poderá comer alguma coisa. Não há telefones lá. Você contará o que descobriu somente a mim.

Eu me deixo ser carregada, muito fraca para pensar. E muito fraca para afugentar a imagem dos olhos ameaçadores da cobra cobrindo os olhos do Irmão Zacharias...

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Capítulo 9

Em resposta à minha surpresa por não ter encontrado nenhum outro monge durante a nossa ida ao refeitório, sou dada uma explicação doutoral e em um tom quase que de desdenho.

— Meus irmãos estão reunidos em seus aposentos. A quaresma é um longo caminho de ascensão e reza, que leva à Páscoa, quando damos boas-vindas e celebramos a alegria da ressurreição... Durante estes quarenta dias, o jejum nos ajuda a purificar-nos, alivia nossos pecados e nos ajuda a manter o foco no que é essencial.

Certamente ele não vai me fazer sentir culpada por empanturrar-me de comida na frente dele! Felizmente, ele me deixa sozinha na mesa abaixo do teto arqueado do refeitório sombrio do mosteiro, com um prato, um copo e uma jarra de água à minha frente. Devoro o pedaço de pão, o queijo de cabra e as tâmaras que o Irmão Zacharias generosamente me ofereceu. Sinto-me tão bem. E, agora, eu provavelmente devia tirar uma soneca. Mas, quando ele reaparece, carregando uma bolsa e uma bengala embaixo do braço, percebo que a soneca terá que esperar...

Capítulo 9

Seria o olhar magnético do Irmão Zacharias, a autoridade obtusa que exala dele, ou o sentimento de que eu o devo alguma coisa pela refeição que não me deixa protestar? Não estou com a menor vontade de caminhar de volta para a caverna que descobri, mas sinto que não tenho opção. Consolo-me dizendo a mim mesma que, quanto mais cedo isto acabar, mais cedo sairei daqui...

A jornada parece interminável e, a cada segundo, temo me perder... Posso sentir o olhar impenetrável do Irmão Zacharias ardendo na parte de trás da minha cabeça e tenho dificuldade de livrar-me do mal-estar que está me causando. Acredito ter encontrado o rio ressecado e entro nele, empurrando galhos e mato para o lado. Mas eu tropeço, deslizando de bunda e termino em um pequeno matagal. A princesa da Lua surge diante de mim como uma aparição. Ondas de alegria tomam conta de mim; eu poderia ficar aqui e apreciar esta bela criatura por horas. Mas um braço me agarra brutalmente, forçando-me a levantar. A égua abaixa as orelhas, avançando ameaçadoramente em direção ao monge, como se estivesse me protegendo. Irmão Zacharias ergue sua bengala e o bate contra os galhos entre ele e a égua, gritando,

Capítulo 9

— Vai embora! Sai daqui!

Como ela não parece disposta a render-se, ele se abaixa, pega uma pedra e joga com toda a força na égua, que solta um relincho de dor, antes de fugir. Fico morrendo de raiva e levanto-me para encarar o monge.

— Ei! Deixa ela em paz, ela não fez nada! Você quer apedrejá-la como um bárbaro?

O ódio no olhar do monge faz meu sangue correr frio. Mas, num piscar de olhos, ele consegue recompor a sua feição em uma expressão quase que digna.

— Este cavalo invade as plantações que trabalhamos tão duro para cultivar. É meu dever afugentá-lo. Venha, vamos continuar.

Engulo minha raiva e continuo ao longo do rio. Encontramo-nos em frente à entrada da caverna. Irmão Zacharias coloca sua bolsa no chão e tira uma grande lanterna de dentro dela. Antes de fechar a bolsa, fico confusa ao ver algo que parece ser um radiotransmissor. Poderia ser um telefone via

Capítulo 9

satélite? A não ser que eu esteja imaginando coisas, ele poderia ao menos ter me oferecido o aparelho para contar para minha família o que aconteceu! Embora, na verdade, meus pais estejam celebrando seu aniversário de vinte anos de casamento no Havaí e tenham uma certa dificuldade em vir me buscar... mas ele não precisa saber disso. Isso não se faz, não posso acreditar! Mas não tenho tempo de dizer nada, visto que ele já entrou pela passagem...

Sigo atrás dele e é hora de engatinhar de novo, mas é bem mais fácil agora que a luz da lanterna do irmão Zacharias está nos guiando. E agora estamos em frente à escada feita na rocha. O monge retira luvas de látex da bolsa e diz para esperar, enquanto ele vai examinar a caverna. Estou frustrada em não poder admirar as pinturas de novo, mas não tenho autoridade sobre o homem. Enquanto ele redescobre o que eu encontrei, baseado em todos os detalhes que ele arrancou de mim durante a viagem, olho a pintura da naja, encarando-me pelo que parece uma eternidade... Então passo a mão nas escamas pintadas por curiosidade. A pintura está rachada, deixando um leve vestígio de pigmento na ponta dos meus dedos. Concentro-me nos

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detalhes da obra; cada escama foi cuidadosamente pintada. Descubro uma escultura muito bem feita, com a forma natural da rocha acentuando o efeito “três-dê”. A garganta acentuada. As presas minuciosamente entalhadas. Meus dedos vão até os olhos, que são tão parecidos com os olhos do monge. As pontas dos dedos sentem um material diferente sob a pupila da naja. Esfrego um pouco mais forte e a tinta se despedaça, revelando algo embutido. Tremendo, uso minha unha para raspar o resto da tinta, revelando um triângulo de bronze com base irregular, como se estivesse quebrado. Termino de arrancá-lo com minhas unhas e rapidamente coloco no bolso da minha calça, já que a luz da lanterna aparece no topo da escada. Irmão Zacharias desce os degraus, balançando a cabeça e resmungando, parecendo estar angustiado.

— Os segredos mais bem guardados são escondidos à vista... O que isto significa? Será que estes documentos revelarão o segredo?

Sem nem me notar, ele coloca uma câmera digital dentro da bolsa, em seguida suas luvas de látex... Como se estivesse assombrado pelo que viu, ele segue em direção à saída, e eu não tenho opção senão segui-lo.

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Ele me guia de volta pelas montanhas, até alcançarmos uma estrada pavimentada, sem pronunciar nenhuma palavra. Não muito depois, ele gesticula para uma carroça puxada por um burro. O motorista para, beija a mão do monge, que retribui abençoando-o, e pede que ele me deixe perto da rodovia do deserto, para que eu possa pegar carona até Alexandria.

Bi amrak, Abouna, a seu serviço, Padre.

Irmão Zacharias aperta meu ombro com uma força extraordinária e fixa seus olhar de cobra no meu.

— A caverna está em território monge. Gostaria que você não falasse dela com ninguém, até que tenhamos rezado e examinado o local. Dê-me seu número, e entrarei em contato quando chegar o momento certo de revelar esta descoberta para o mundo científico. Garanto que você receberá sua parte da glória. Mas até lá...

É verdade o quê dizem. As aparências enganam. Ele aperta meu ombro ainda mais forte para deixar clara a ameaça, mas o

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sorriso benévolo e a cruz em seu pescoço escondem o ato dos olhos do motorista, o qual abre um sorriso sem dentes. Engulo e apresso-me para subir na carroça, cheia de lã de ovelha recém-tirada e pingando lanolina. Puxo a gola da camiseta sobre meu nariz, tentando em vão barrar o cheiro horrível da lã, o suor de um animal estressado, de entrar em minhas narinas. Enquanto a carroça sacude pela estrada, curvo-me e derramo lágrimas de cansaço e frustração. Perdi meu telefone e minha moto, um monge sociopata roubou minha descoberta, e nunca mais verei Amira, a princesa da Lua, de novo...

Devo ter caído no sono em cima da lã macia, apesar do mau cheiro. O motorista, com um sorriso largo, cutuca minha cabeça para me acordar antes de me mostrar uma trilha abaixo da estrada do deserto. Agradeço-o calorosamente e começo minha descida, lutando contra a dor em meus músculos. Percebo que não tenho desejo algum em juntar-me aos colegas da escavação em Alexandria. Só preciso de um banho para livrar-me deste cheiro ruim impregnado em meu cabelo e em minhas roupas e, depois, empanturrar-me dos doces da minha tia.

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Pergunto se posso pegar emprestado o telefone celular do primeiro motorista que para à beira da estrada e ligo para que John venha me resgatar. Existem momentos na vida em que você tem que ir contra seus princípios, e, pela primeira vez, estou disposta a aceitar a ajuda de um príncipe encantado...

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Capítulo 10

John nem piscou quando entrei no carro dele, à beira da rodovia onde eu o esperava, mas quando vejo meu reflexo no espelho do carro, quase desmaio. Embaixo de uma floresta tropical de cabelo preto emaranhado com lã de ovelha, e parecendo que fui recentemente exumada, eu teria espantado até a mais aterrorizante das múmias! Numa tentativa de esquecer esta visão horrível, começo a contar a história das minhas aventuras em alta velocidade. Mas John me interrompe, sugerindo que eu conte tudo quando estiver mais calma. Ele me informa que avisou os arqueólogos em Alexandria das razões da minha ausência, antes de pegar emprestado o equipamento de escalada de outro aluno. Ele quer recuperar as partes da minha moto para tentar consertá-la.

— Sinto muito pelo seu acidente, Leyla. Eu nunca deveria ter me oferecido para mexer na sua moto...

Embora eu o diga, repetidamente, que foi minha culpa, que eu não deveria ter saído da estrada, John insiste em se culpar pelo acidente. Bem, como parece ser uma ideia fixa, eu cedo e tento guiá-lo, o melhor que posso, para

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onde a moto caiu. Quando estacionamos ao lado de uma pequena estrada e John vê a moto lá embaixo, ele balança a cabeça negativamente.

— Você poderia ter morrido, e teria sido minha culpa!

— Hmm... Estou viva e estou bem. Quer que eu desça com você para pegar a moto?

— Não tem a menor chance de eu deixar você em perigo de novo!

Está bem! Deixarei este escoteiro agir sozinho. Observo enquanto ele pega seu equipamento e começa a descer o despenhadeiro. Primeiro, ele recupera o capacete e todas as coisas que deixei na rocha que parou a minha queda, depois desce para onde a moto quebrada está jogada, no fundo do barranco. Ele a amarra com a corda, firma seus pés no chão e iça a moto, usando seus braços musculosos. Uau, impressionante... Tudo o que eu tenho que fazer é puxá-la para a beira da estrada e esperar que o salvador retorne e ajude a colocar os fragmentos dentro do carro.

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Enquanto trabalhamos, nossos corpos se tocam várias vezes e eu sou pega por uma estranha vergonha. Arrepios correm pela minha espinha, e eu respiro o aroma de seu perfume. Simplesmente divino. Observo-o secretamente, tão sério, tão dedicado e tão... inesperadamente atraente. O cabelo dele todo bagunçado, coberto de graxa, e, quando se levanta, tirando o cabelo do rosto com as costas da mão, e seus olhos, tão azuis quanto a água do mar olhando dentro dos meus, fazem-me querer ficar aqui, jogar-me em seus braços e...

Mas, em vez disso, ele passa para o banco do passageiro e abre a porta para eu entrar, como um verdadeiro cavalheiro. Preciso parar com estas fantasias! Entro no carro e começamos nossa viagem para o Cairo. Abro a janela discretamente para não engasgar até a morte com o meu mau cheiro e finjo pegar no sono para esconder de John o que ele está me fazendo sentir. Acredito que devo mesmo ter caído no sono porque, quando abro os olhos, o carro está parado em um beco no Cairo.

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John deixa eu acordar sozinha, desaparecendo pela porta de um prédio e retornando vários minutos depois, sorrindo calorosamente.

— Preparei um banho e separei algumas toalhas e roupas para você. Você pode colocar as suas, hã... roupas sujas numa sacola plástica. Enquanto isso, vou levar a moto para a garagem logo ali. É a primeira à direita. O banheiro fica à esquerda. Por favor, sinta-se em casa. Vou deixá-la em paz.

Já sei o que tia Wadiha vai dizer quando eu contar tudo isto para ela:

— Viu, eu te falei, você pode ser uma jovem forte e independente, mas, às vezes, é bom ter uma boa companhia em quem confiar. Tenho certeza de que ele é um bom garoto. Convide-o para vir jantar!

Mas acho que não vou deixá-la submetê-lo a uma interrogação. Bem, pelo menos não agora... Por hora, agradeço John e subo as escadas que levam ao apartamento dele, ansiosa para me lavar. Fecho a porta atrás de mim e descubro uma bela sala, um sofá

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aconchegante e uma mesa de centro oriental, assim como prateleiras cheias de romances e livros de arqueologia. Esta escrivaninha perto da janela deve ser onde ele trabalha. Existem mais livros aqui, um computador de alta tecnologia com impressora e um conjunto para estudos arqueológicos: pincéis, picaretas, instrumentos de medida, um microscópio, cadernos e um arsenal de caixas, peneiras, tubos de ensaio, lâminas, pinças e coisas do tipo. Está na cara que ele é muito apaixonado por tudo isso, e isso me deixa animada. Chega, não vou começar a revistar a casa dele; isso não seria educado. Abro uma porta achando que é o banheiro, mas é na verdade o quarto dele. Fecho depressa a porta, completamente envergonhada, e abro a próxima que é de fato a do banheiro. Desligo a torneira, acho as toalhas sobre um banco e vejo uma muda de roupas. Ufa, uma camiseta larga e uma bermuda de corrida longa. O quê? Por um momento tive medo de encontrar roupas da namorada dele, mas olhando para a pia fico tranquila: há apenas um barbeador elétrico e só uma escova de dentes. Encolho os ombros e rio dos meus pensamentos ridículos, tiro as roupas e entro na banheira de água quente com prazer...

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Sentada de pernas cruzadas no sofá, saboreio com um prazer descarado o meze que John comprou para o nosso jantar. É surreal o quão atencioso ele é. Ele também tomou banho e trocou de roupas, e estamos agora confortáveis na sala de estar. Beliscando enroladinhos de queijo e folheados recheados com verduras e carne, conversamos casualmente sobre minha desventura, a vida e interesses, e é bem legal nos conhecermos melhor desta forma, fora da universidade. Quando falo com ele sobre Amira, descubro que ele também ama cavalos.

— Que fascinante conhecer uma princesa dessas — diz.

— Obrigada pelo elogio! — digo brincando. — Mas sou uma filha do povo!

— Eu estava falando da égua! Hã... Mas você também não é nada mau — acrescenta. — Quero dizer, uma puro sangue árabe confiou em você. Isso é raro. Eles são tão orgulhosos e difíceis de domar. Sabe qual é a lenda que cavaleiros egípcios costumavam contar? Alá criou um cavalo a partir de uma rajada de vento. Ele deu

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este filho do vento ao homem, dizendo, “Vá, e nas costas dele, você deve gozar de uma prova do prazer que lhe espera no paraíso”.

Amira é a filha do vento e a princesa da Lua... Adoraria vê-la de novo!

Ficamos em silêncio por um momento, perdidos neste conto de fadas. Quero convidá-lo para passar um final de semana com meu pais. Poderia mostrar-lhe o oásis que meu pai transformou em um santuário de aves e que só pode ser atravessado a pé, de barco ou a cavalo. Não tenho coragem de convidá-lo, talvez por saber que teria que aceitar ser chamada de “minha pintinha”, “minha patinha” ou outros nomes ridículos de aves na frente do John! Este momento de silêncio nos sobrevoa como um bando de pombas, até que John, inesperadamente, dá um tapa na própria testa, segue até a escrivaninha e abre uma gaveta. Ele pega um celular velho e o entrega para mim.

— É o meu antigo. Não preciso mais dele. Se você o quiser... Você disse que conseguiu recuperar o seu cartão depois do acidente?

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— Deve estar na minha calça. Vou buscá-lo. É muito gentil da sua parte.

Quando retorno do banheiro, devo estar com uma expressão bizarra em meu rosto, pois John me olha preocupado.

— O que foi, não o encontrou?

— Encontrei, mas também achei isto, quase me esqueci ” — digo, entregando-lhe o triângulo de metal encontrado embaixo do olho da pintura da cobra, que coloquei no bolso da calça. — O quê você acha que possa ser?

John limpa as mãos antes de levantar-se e vir até mim. Ele segura o triângulo de metal com os dedos, coloca-o contra a luz e ergue uma sobrancelha surpreso.

— Você reparou nos sinais gravados?

Imediatamente, esquecemos o jantar e concentramo-nos no triângulo misterioso. John abre espaço em sua escrivaninha e coloca o triângulo em uma bandeja iluminada, coberta por um plástico. Ele puxa

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outra cadeira para mim e entrega-me um pincel. Eu pego o triângulo e limpo os restos de pigmento, o pó e fragmento de rocha. Segurando o triângulo com uma pinça, eu o viro e limpo o outro lado. John junta os fragmentos, enrolando a folha de plástico como um funil, e despeja os pedacinhos em um tubo de ensaio.

— Podemos analisar estes fragmentos no laboratório da universidade.

Depois, John coloca o triângulo na bandeja ao lado de uma régua e usa o celular para tirar fotos da frente e da parte de trás. Ele transfere as imagens para o computador, senta e olha fixamente para a tela, desanimado, antes de dizer:

— Quebrado... Sinto muio.

— Como disse?

— É uma parte de algo maior. Se eu tivesse o objeto inteiro, talvez conseguisse decifrar o que está gravado nele. Veja, além de todas estas formas geométricas, estes símbolos são letras gregas, mas eles não significam nada quando organizados desta forma.

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Sabia que devia ter escolhido estudar grego antigo em vez de hieroglíficos! Mas contanto que um de nós saiba... Penso concentradamente.

— Desculpe-me por ser fã de faraós e tudo mais, mas será que o triângulo não é o topo de uma pirâmide?

John tecla como um virtuoso e faz movimentos frenéticos com o mouse. Ele acha fotos das pirâmides de Gizé e coloca a imagem do triângulo em cima.

— Não, pode ver que a ponta do triângulo tem exatamente trinta e seis graus. É bem mais estreita do que a ponta das pirâmides e... Trinta e seis graus??? Não pode ser só uma coincidência. A não ser que eu esteja muito enganado...

Ele está indo depressa demais para mim. Com alguns cliques no mouse, John tira as medidas do triângulo e coloca-o na ponta de uma estrela de cinco pontas. Ele é mágico ou eu sou uma negação em geometria. Olhando para a minha expressão de perplexidade, ele pergunta:

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— Trinta e seis graus, pentagrama, Pitágoras, proporção áurea. Não significa nada para você?

—Eu nunca fui muito fã de matemática, desculpa. Tudo o que sei é que este triângulo faz parte do quebra-cabeça, provavelmente uma estrela de cinco pontas, com símbolos incompreensíveis gravados nela. Só temos um pedaço da estrela, e acho que os outros pedaços não estavam escondidos por baixo da pintura da cobra na caverna. Eu teria sentido se estivessem. Então os outros pedaços estão em outro lugar e, até que a gente consiga reconstruir o quebra-cabeça, não vamos entender nada, e o nosso triângulo vai ser tão inútil quando uma meia sem a outra! Você que é esperto, tem alguma ideia de onde os pedaços que estão faltando possam estar?

— Não — responde o gênio—, mas vou tentar descobrir. Não prometo nada.

Enquanto ele se concentra no computador, eu caminho pela sala, passando minha mão pelas bordas dos inúmeros livros nas prateleiras, desfrutando da agradável fragrância de

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papel velho. Aroma, papel, pergaminho, manuscritos... Subconscientemente, estas associações fazem-me lembrar dos papéis enrolados escondidos na caverna, os quais o Irmão Zacharias levou consigo. Se, ao menos, eu tivesse ficado com eles! John seria capaz de decifrar o que estava escrito, já que ele entende grego antigo, e, quem sabe, entenderíamos tudo! Uma onda de frustração toma conta de mim e tenho uma vontade inesperada de usar o caramelo da minha tia para remover cada fio de cabelo do corpo do monge. A imagem faz-me rir e John para para ver o que é que eu acho tão engraçado. Quando termino de explicar, ele está com uma expressão de terror.

— Tortura com caramelo... Nunca ouvi nada tão sádico! Prometa que, se ficar com raiva de mim, você nunca vai me depilar!

É claro que não! E não vejo como ele poderia me deixar com raiva. Mas só de pensar nele sob meu domínio, deitado quase que completamente nu na minha frente, sinto um arrepio delicioso pelo meu corpo. Rapidamente, livro-me do pensamento, que é tão impróprio quanto distrativo, e concentro-me no que é importante: os pergaminhos. Se, ao menos, houvesse uma forma de roubá-los sem ser pego pelo Irmão Zacharias!

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Capítulo 12

— Leyla, venha rápido

Hã? Eu estava cochilando no sofá enquanto John continuava a pesquisa e levo alguns minutos para recuperar os sentidos. Levanto-me e sento ao lado dele. Ele parece estar hipnotizado.

— Mandei as fotos do triângulo para alguns estudantes de arqueologia grega de universidades internacionais. Tem alguém tentando falar urgentemente comigo no Skype.

Quando chego perto de John, vejo o rosto de um jovem de cabelos negros já na tela.

— Por favor, escute com atenção, não temos muito tempo. Meu nome é Battushig e eu tenho algo urgente para contar. Aqui na Mongólia, perto do Monte Altai, caí numa fenda na galeira e descobri um cavalo congelado e um cilindro de metal que usei como um gancho de escalada. Graças ao meu cavalo Altaïr, meu povo conseguiu me resgatar.

Acredito ser algum tipo de piada, mas Battushing continua a contar a história, com um tom completamente sério.

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—A Academia de Ciências de Ulan Bator montou um laboratório improvisado perto da fenda e descobriu que o cavalo estava lá há quase dois mil e quatrocentos anos. Depois, eles encontraram o cavaleiro, também congelado, vestindo uma armadura idêntica àquelas usadas por homens da cavalaria do exército grego na época. Mas foi então que a Hannibal Corp tomou controle das operações e levou todas as ‘descobertas’ em aviões refrigerados para o centro criogênico em Massachusetts, nos Estados Unidos. Um ex-aluno da universidade que trabalha lá disse que o cavaleiro estava carregando uma carta de câmbio e um ‘passe’ militar assinados pelo general Ptolomeu em 326 AC...”

— Ptolomeu, o mesmo que virou faraó do Egito? pergunto, de repente fascinada. — A propósito, nós somos John e Leyla.

— Ele mesmo, mas não é só isso. Conheci este homem, John Fitzgerald Hannibal, e ainda tenho arrepios só de pensar. Ele veio para a Mongólia em seu jato pessoal para pegar o cilindro que usei como um gancho, supostamente para levá-lo pessoalmente ao

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laboratório no Monte Altai, mas ele ficou com o cilindro para si. Este homem é incrivelmente poderoso e perigoso, acreditem.

— O quê tinha nesse cilindro de tão importante?

— Um segundo cilindro feito de osso com uma mensagem criptografada nele. Graças à “rede”, à minha... amiga Salonqa e ao professor Temudjin da minha universidade, consegui decifrar a mensagem. Mas só depois de Hannibal ter levado o cilindro. Suponho que agora ele também entenderá a mensagem gravada: “Cavalo de Alexandre, invencível em tuas costas há de carregar uma estrela de poder eterno”. De todas as provas que coletamos, acreditamos que a mensagem esteja se referindo a Alexandre, o Grande, e seu cavalo Bucephalus. Mas também à estrela de cinco pontas, um selo de poder que fez Alexandre invencível.

— Uma... estrela de cinco pontas, feita de metal e coberta de gravuras? — pergunta John.

— Isso, até que você entendeu bem depressa. O cavaleiro congelado estava carregando um triângulo de metal com

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gravuras, parte de uma estrela de cinco pontas. Leyla, o triângulo que você encontrou na caverna também faz parte dessa estrela. Vejam a foto que coloquei junto com a que John tirou; ela se encaixa na estrela quebrada perfeitamente. Com o triângulo nas mãos de Hannibal agora...

— Não entendo o que Hannibal quer com estes fragmentos da estrela, Battushing.

— Ele quer encontrar os pedaços que faltam do selo da onipotência, que Ptolomeu confiou aos cavaleiros. Eles supostamente foram levados para “muito longe”. O primeiro fragmento foi encontrado na Mongólia, o segundo no Egito, mas não sei onde os outros estão. Se John Fitzgerald Hannibal, com o poder da rede de inteligência, o apoio financeiro e o domínio da mais sofisticada tecnologia, encontrá-los, então ele será capaz de juntá-los e recriar a estrela. Ele se tornará tão poderoso e invencível quanto os maiores conquistadores e ditadores do mundo!

— Mas como podemos pará-lo?

Capítulo 12

— Ele não pode colocar as mãos neles! Começando pelo pedaço que você tem. Você consegue encontrar um lugar seguro para escondê-lo, o mais rápido possível?

John e eu nos olhamos, aterrorizados. Se Hannibal for algum tipo de aranha que conseguiu infiltrar-se em todas as redes de poder e informação, como podemos escapar da teia dele? Neste momento, o telefone que John me emprestou e que está com o meu cartão começa a tocar no sofá. Corro até ele, e John diz para colocar no alto-falante. É a voz de um homem na linha, sério e confiante.

— Olá, Leyla. Aqui é John Fitzgerald Hannibal. Você possui um item que é de interesse particular para um colecionador, como eu. Ofereço um milhão de dólares por ele.

Fico paralisada, sem conseguir falar absolutamente nada. Como esse homem me encontrou? Como ele sabe que eu tenho o triângulo? E está oferecendo um milhão de dólares por ele!

Capítulo 12

— Minha querida — Hannibal prossegue —, é uma oferta que você simplesmente não tem como recusar. Daqui a exatamente três horas, você dará este objeto ao Irmão Zacharias que, em troca, lhe dará uma mala cheia de dinheiro. Caso contrário...

Ele desliga.

Na tela, a cara de Battushing tornou-se terrivelmente aflita. Ele aperta os punhos.

— Eu devia saber. Ele deve ter informantes indetectáveis, dignos de trabalhar na NSA americana, rastreando todas as comunicações relacionadas a Alexandre, o Grande. Leyla, John, este homem é perigoso. Ele está disposto a fazer de tudo, até as coisas mais imagináveis, para obter esses fragmentos. Não quero nem pensar o que ele pode fazer com você e sua família se vocês não fizerem o que ele quer. Receio que você não tenha outra opção senão obedecê-lo. Por favor, não se arrisquem...

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Capítulo 13

Afogo-me em raiva durante a viagem. Este homem, Hannibal, tem um imenso poder e pode usá-lo como bem entender, com total impunidade. John e Battushing deixaram claro para mim que ninguém, nem mesmo a polícia local nem o embaixador americano, nos levaria a sério. Odeio ditadores. Mas, como todos os ditadores, ele também é humano... e deve ter uma fraqueza. Só preciso encontrá-la e usá-la contra ele. Mas, até lá, tenho que ceder. Que vontade de gritar! John, sempre pragmático, colocou o triângulo em uma caixa e enfiou-a dentro de uma mochila, junto com uma garrafa d’água e outras coisas mais. Ele parece pessimista e não disse uma palavra desde que deixamos o Cairo.

O mosteiro de São Bishoy parece uma visão fantasma debaixo dos olhos de Osíris, o sol da noite. Sob o céu aveludado e enfeitado de estrelas distantes, as construções silenciosas assumem uma cor acinzentada, oscilando entre o cinza e o prata fosco. Enquanto esperamos por um sinal na escuridão do pátio do mosteiro, uma silhueta aparece do nada, materializando-se das sombras como um fantasma. Abafo um grito ao reconhecer Irmão Zacharias, o eco de seus passos absorvido pelo barro.

Capítulo 13

— Trouxe o que pedimos?

Sinto um arrepio só de ouvir aquela voz fria e ameaçadora. John afirma com a cabeça, apontando para a mochila. Irmão Zacharias lança um olhar tão afiado quanto um bisturi para John, mas este não cede, mantendo-se firme. O monge gesticula para o seguirmos e atravessarmos o pátio, passando pela Igreja da Virgem Maria e pela cantina. Então subimos uma escada estreita que nos lança na escuridão. Uma frio fúnebre faz com que os pelos do meu pescoço se arrepiem. Ou talvez seja medo. John usa a lanterna do celular e o Irmão Zacharias liga a sua logo depois. Vagamente tranquilizada pelas luzes, sigo os dois homens por um corredor empoeirado e rançoso. Ao chegar a uma porta, John pergunta:

— Senhor, hã, Padre, esta é a caverna onde São Bishoy buscou refúgio?

— Não — responde Zacharias —, estas são apenas adegas de óleo.

— Mas eles não descobriram manuscritos nestas cavernas no século IX, que foram

Capítulo 13

trazidos pelos monges que fugiam da perseguição da Síria e de Bagdá, durante o século VIII? Os manuscritos que Leyla encontrou na caverna, e os quais você já deve ter examinado, são da mesmo época?

Surpreso com a rajada de perguntas, Irmão Zacharias congela por um momento, inspecionando John com seus olhos verdes e dourados antes de responder:

— Eles datam do fim do terceiro século A.C. Por que você está tão interessado nisso?

— Qual é a ligação entre estes manuscritos e o triângulo de metal que o Sr. John Fitzgerald Hannibal está tão interessado em adquirir?

A expressão facial do monge escurece, e é como se ele estivesse falando com alguém invisível atrás de nós.

— Estava escrito: “Os segredos mais bem guardados são escondidos à vista.”

De repente, ele solta uma risada quase que demoníaca, o eco ressoando nas paredes do corredor.

Capítulo 13

— Ó, Senhor! Tu me julgaste indigno de compreender Tua mensagem... A Luz do Sol! Aquela maldita...

O ódio de Irmão Zacharias cai sobre mim como lava ardente. A fúria e a frustração deste homem, mais perigoso do que uma cobra, aterrorizam-me tanto que começo a sacudir o braço de John, gaguejando:

— D... Dá o triângulo para ele, John! Anda!

— Não, não! Se o Sr. Hannibal prometeu um milhão de dólares de recompensa pelo triângulo, a troca deve ser feita da maneira correta! Sigam-me!

Ele anda nervoso pelo corredor até chegar a uma porta de madeira trancada por uma grande chave. Ele a abre furiosamente.

— Querem ver a caverna onde São Bishoy buscou refúgio? Eu insisto. A visita é grátis! Tinha uma corrente pendurada aqui, que ele amarrava ao cabelo para evitar pegar no sono enquanto meditava, esperando que Deus lhe mandasse uma visão... Uma visão!

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Aquela risada insana de novo. Após avançar mais um pouco pela caverna de São Bishoy, ele pega uma mala e estende a mão. Posso ver uma tatuagem em seu pulso, a cruz cóptica, deformada por várias cicatrizes. Parecem escarificações. Elas causam arrepios em todo o meu corpo. Sem tirar os olhos dele, John abre a mochila e pega a caixa com o triângulo, colocando-a na palma do monge. O monge segura a caixa e coloca-a dentro do bolso. Então, rápido como uma cobra, ele pega a mala, corre para fora da caverna, bate a porta na nossa cara e gira a chave, trancando-nos lá dentro.

Fico paralisada de medo, mas, ao mesmo tempo, aliviada de não estar nas mãos do monge psicopata. Viro-me para John com um pensamento desagradável na cabeça. Já que ele é tão atlético, por que não tentou parar o Irmão Zacharias com um golpe de judô, um soco de karatê ou até uma cabeçada para que ele não nos prendesse feito dois idiotas?

Como se lesse minha mente, John mostra o telefone.

Capítulo 13

— Achei melhor fazê-lo falar. Filmei a confissão dele.

— Sério? E isso vai nos ajudar a sair desta prisão?

— Não, mas podemos usá-la mais tarde. Venha comigo.

John abaixa a cabeça e caminha em direção a uma cavidade na caverna, ajoelhando-se na frente dela. Ele empurra e abre uma pequena porta de madeira que leva a um segundo túnel, bem mais estreito do que o primeiro.

— Os monges se preparavam para todos os tipos de invasões naquele tempo. Eles pensaram num jeito de sair do mosteiro discretamente. Podemos ir?

— Mas Zacharias não sabe que, eventualmente, descobriríamos esta rota de fuga?

— É provável. Ele deve ter pensado que teria tempo suficiente para colocar o dinheiro em algum lugar seguro. O que você não faria por um milhão de dólares?

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Capítulo 14

Depois de meia hora de caminhada, saímos da galeria de teto baixo e chegamos às adegas do mosteiro vizinho, Deir el-Suryan. Subimos as escadas até a cantina deserta e chegamos a um quintal grande. Na escuridão parcial da noite, posso ver dois campanários altos, a torre de Qasr guardando a entrada do mosteiro, um cubo branco com várias aberturas pequenas. As pontes levadiças lembram-me os castelos construídos por lordes durante a Idade Média. Pequenas cúpulas cobertas por largas cruzes trifoliadas surgem do lado de dentro dos muros fortificados. Mais capelas. Mas onde encontraremos uma alma viva aqui, bem no meia da noite?

John caminha em direção a uma das capelas com luzes trêmulas, como se fossem velas. A porta está aberta. Tiramos os sapatos, caminhamos pela nave e seguimos para o coro, atrás de uma ampla arcada de madeira. Hipnotizada, olho para as pinturas que cobrem as paredes e depois para a abóbada; as cores desbotaram com o tempo, mas ainda irradia majestade. Percebo semelhanças entre estes profetas, anjos, arcanjos e santos e as pinturas egípcias na caverna, como se o fervor dos religiosos,

Capítulo 14

independente da crença, continuasse inalterado durante os anos. Sou trazida bruscamente de volta à realidade pelo cotovelo de John cutucando-me, intimando que eu o imite e me curve diante de um grupo de monges assustados, escondidos nas sombras das laterais do coro.

— Perdoem nossa intromissão, meus Irmãos, não tenham medo...

Após ouvir a explicação de John em seu escritório sombrio e ver a gravação no telefone dele, Irmão Kyrillos, o chefe dos monge, fecha os olhos e resmunga uma oração. Depois respira fundo e olha fixamente para nós dois.

— Nosso patriarca, Padre Tawadros II, deve ser informado imediatamente. Ele saberá qual decisão deve ser tomada em relação ao Irmão Zacharias e à caverna que vocês descobriram. Por favor, dê-me seu telefone e espere aqui.

Diante dos nossos olhos confusos, ele segue em direção a uma imagem de Cristo na cruz, sua mãe Maria à direita e o apóstolo João à esquerda. Ele aperta os dedos contra a auréola de ouro de Cristo, a parte mais brilhosa

Capítulo 14

da pintura, e um mecanismo escondido faz o painel de madeira que sustenta a imagem mover-se para o lado, revelando um outro cômodo.

Eu sussurro:

— Os segredos mais bem guardados são escondidos à vista...

Quando o painel se fecha atrás do Irmão Kyrillos, John levanta-se e dá alguns passos para esticar as pernas. Ele para em frente à imagem e olha mais de perto. Ele fala alto, como se estivesse recitando uma aula de arte bizantina.

— A cruz é o elo entre o céu e a terra, o suporte que virou a árvore da vida da Paixão e Ressurreição de Cristo, posicionada no Calvário, “o lugar da caveira”. Na caverna está a caveira de Adão, o protótipo da humanidade, a semente enterrada no chão que deve secar para gerar fruto...

De repente, John grita e corre em minha direção, seus olhos arregalados.

— Leyla, rápido, temos que sair daqui agora!

Capítulo 14

— O quê deu em você?

— Este segredo está escondido nas sombras! A caveira tem a mesma marca “H” que a Hannibal Corp usa! Irmão Kyrillos deve estar trabalhando para eles também!

Depois disso, tudo acontece tão rápido quanto areia vazando de uma ampulheta quebrada. Posso ouvir um barulho, como se um motor de carro se aproximasse. Raios de luz cortam a noite e as janelas, ofuscando-nos. A imagem se move e Irmão Kyrillos aparece, ameaçando-nos com uma pistola automática.

— Vocês deviam ter dado o objeto para o Irmão Zacarias, mas preferiram tentar a sorte...

Não entendo! Eu vi John colocar a caixa na palma da mão do Irmão Zacharias, mas agora Irmão Kyrillos está perguntando por ela? E por que John está tão indiferente?

— Quem é “Ele”? Seu patriarca, ou John Fitzgerald Hannibal? — pergunta friamente John, avançando lentamente em direção ao Irmão Kyrillos.

Capítulo 14

— Como ele conseguiu te corromper? Ele lhe prometeu proteção para o seu grupinho? Enterrou segredos terríveis que você gostaria que jamais fossem revelados? Ou simplesmente comprou você com os milhões dele?

O monge, incerto da atitude de John, dá um passo para trás.

— Resistir será em vão. Os homens do Sr. Hannibal estarão aqui em segundos para cuidar de vocês! Entregue-me o triângulo verdadeiro agora, e não haverá sangue derramado!

Eu me sinto como uma marionete idiota assistindo a este duelo muito além da minha compreensão. De qual triângulo eles estão falando?

John coloca a mão no bolso esquerdo e tira uma caixa idêntica à que deu ao Irmão Zacharias. Ele a sacode, chacoalhando o triângulo dentro, e continua a andar em direção ao monge.

— É isto que você quer? Está bem, você ganhou!

O monge estica a mão, hesitante. Quando está prestes a colocar a caixa

Capítulo 14

na mão do monge, John age como um raio: ele imobiliza o monge com uma chave de braço, fazendo-o gritar de dor e largar o revólver. John joga-me a caixa e luta com o monge, que escapou e está tentando pegar a arma. John chuta a parte de trás dos joelhos dele, fazendo-o cair no chão. Depois o derruba, nocauteando-o com um golpe certeiro na nuca. Enquanto ordens são dadas aos homens armados que saem de jipes no pátio, John agarra minha mão e carrega-me para fora do escritório, rumo à parte de trás do prédio. Finalmente, entendo o comportamento de John. Ele estava tão desconfiado, que deu a Zacharias um triângulo falso! “Um grande risco”, penso, correndo para a saída traseira, onde vemos um pequeno pátio. Noto uma escadaria estreita ligada à parede a alguns metros de distância, e corremos nessa direção. Estamos quase no topo quando a luz de um refletor nos ilumina e uma voz fria grita:

— Não se mexam! Vocês estão cercados. Coloquem as mãos atrás da cabeça.

Vejo sombras correndo em nossa direção. Com coração a mil, subo mais um degrau e uma bala atinge a pedra na frente do meu pé. Tudo bem,

Capítulo 14

entendi. Lentamente, obedeço às ordens, mas não antes de olhar para John e depois para o parapeito. Pular ou não pular?

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Capítulo 15

Pedaços de pedra voam à nossa volta ao pularmos o muro. Corro atrás do John em meio a pedras e areia, rumo às árvores abaixo da gente. O declive fica mais acentuado, levando-nos a alguns despenhadeiros assustadores. Ouço passos em minha direção e faço uma prece silenciosa para a lua, pequena e afilada, como as adagas usadas pelos Ḥashshāshīn, os assassinos persas do século XI. Se ao menos eu tivesse uma arma! E soubesse como usá-la! Silenciosamente, John gesticula para que eu vá por uma direção enquanto ele vai por outra. Corro ziguezagueando entre árvores e pedras, meus perseguidores cada vez mais perto por conta do terreno irregular. Um deles, logo atrás de mim, grita sem fôlego:

— Pare de correr ou vou estourar suas pernas!

Tomada pelo desespero, não consigo parar de correr... Tiros vindos de trás atingem galhos e pedras perto dos meus pés. Espero que John tenha conseguido escapar. Posso sentir lágrimas brotando contra a minha vontade, embaçando a minha visão. Enxugo meus olhos irritada e vejo uma sombra branca à minha frente.

Capítulo 15

Apavorada, paro para não me chocar contra ela e percebo que é a égua branca, a filha da Lua! Instintivamente, agarro a crina com uma mão e monto em suas costas. Sem precisar pedir, a égua dispara pelo terreno que ela conhece tão bem, deixando meus perseguidores para trás.

Logo quando acho que estamos a salvo, as luzes dos faróis de uma caminhonete cortam as sombras projetadas pelos galhos. Os homens de Hannibal não deixam sua presa fugir tão facilmente! Como vou escapar quando chegarmos em terreno aberto?

Uma serpente luminosa começa a tomar forma bem à nossa frente, e reconheço a estrada do deserto. A égua está nos levando em direção a ela! Eu me levanto e comando para que diminua a velocidade, mas ela abaixa as orelhas e acelera mais ainda, correndo declive abaixo e deixando uma nuvem de poeira para trás. A caminhonete nos avistou e está chegando cada vez mais perto.

Amira, pare, por favor!

Ela se recusa a obedecer e continua o trajeto em direção à estrada, narinas

Capítulo 15

ofegantes por conta do esforço. Eu poderia salvá-la da fúria dos nossos perseguidores, que não hesitariam, nem por um minuto, em atirar nela. Eu só preciso pular das costas de Amira e render-me, dando-lhe uma chance de escapar. Mas, por alguma razão, escolho confiar na determinação dela. Abraço seu pescoço, afundo meu rosto na crina macia e fecho os olhos, pensando que minha hora chegou. Se não colidirmos com os carros lá embaixo, as armas dos homens de Hannibal nos deixarão em pedaços!

A caminhonete está bem atrás de nós. De repente, sinto os músculos da égua tensionarem, e ela salta. Quando abro meus olhos, descubro que ainda estou nas costas dela. A égua parou de correr e virou-se. Fazendo um horrível barulho metálico, a caminhonete dos perseguidores cai numa fenda profunda. Amira os guiou até lá! Conhecendo o território de cor, apenas ela conseguiria atravessar a fenda como uma águia-real. Começo a tremer após o acontecido, mas também sou tomada por uma alegria intensa e indescritível. Amira e eu, Indiana Leyla Jones, acabamos de dar um salto de fé!

Capítulo 15

Acaricio Amira por um longo tempo enquanto ela, bufando alto, leva-nos de volta ao mosteiro Deir el-Suryan. Mas, assim como da primeira vez em que me levou aos limites do São Bishoy, ela para antes de chegar perto de outros humanos. Se pudesse falar, ela me contaria sua história. Mas, no fundo, sei que devemos seguir caminhos diferentes. Desmonto e abraço carinhosamente o pescoço da minha princesa da lua. Ela respira contra meu pescoço uma última vez, antes de retirar-se e sair trotando orgulhosa, rabo empinado e orelhas apontadas, de volta ao território selvagem dela...

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Capítulo 16

— Está delicioso, senhora, mas não estou mesmo com fome!

Sabia que eu não devia nunca ter apresentado o John à tia Wadiha.

— Você salvou a vida da minha sobrinha! Você é um herói!

— Não, senhora, a égua Amira é quem foi a heroína. Tudo o que fiz...

— Já disse para me chamar de tia! — interrompe, apertando a bochecha dele afetivamente, como os egípcios costumam fazer com suas crianças. — Você faz parte da família! Então, me diga, quantas crianças vocês vão ter?

Não sei quem está mais vermelho, eu ou John, ambos parecendo pimenta! Tudo bem, talvez tenhamos dado um beijo romântico quando nos reencontramos no Deir el-Suryan, mas toda esta conversa sobre casamento e crianças...

Se bem que eu não me importaria daqui a alguns anos!

Capítulo 16

Mas, até lá, entre aulas de universidade e eventos recentes, vamos estar muito ocupados. A história da caverna do Wadi El Natrun ainda não chegou ao fim. De acordo com os arqueólogos que começaram a investigá-la, a caverna foi, primeiramente, ocupada em meados de 1340 A.C. por Ptahmose, um escultor do reinado do faraó Aquenáton, e sua esposa de beleza lendária, Nefertiti. Ele também deixou um “testamento” gravado nas paredes da caverna. Aparentemente, ele escolheu exilar-se longe desta rainha, que era indiferente ao amor dele, e vivia neste vale. Provavelmente, estava ficando cego, levando em conta a baixa qualidade dos entalhes mais recentes. Que história triste!

O pedaço da estrela e os pergaminhos que pertenciam a Dimitrios, um dos soldados de Alexandre, o Grande, foram levados para as salas seguras do porão do Museu Nacional do Cairo, para que um dia seus segredos sejam descobertos. John e Battushing passam horas on-line, especulando sobre a mensagem incompleta na estrela. Quanto a mim, penso principalmente em Bucephalus, o cavalo incrível que carregou Alexandre tão fielmente durante suas conquistas. Vamos esperar que Hannibal jamais o consiga rastrear!

Capítulo 16

Com a ajuda do Professor Temudjin, os contatos de Battushing estão investigando destinos e rotas pelo mundo que Ptolomeu possa ter mandado os outros cavaleiros tomarem, a fim de manter os pedaços do selo da onipotência fora do alcance da ganância humana. Sr. Temudjin acha que Hannibal deve ter seguido esta mesma lógica e, por isto, seja tão interessado no Egito, que foi conquistado por Alexandre no início de suas explorações. E que melhores caçadores de pistas Hannibal poderia ter senão os monges, peritos em línguas antigas, curadores de bibliotecas e ouvintes de confissões?

Falando em monges, foi tudo por água abaixo. Irmão Kyrillos foi demitido pelas autoridades cópticas, chocadas após ouvirem nossa história e assistirem ao vídeo gravado por John nas adegas do São Bishoy. Kyrillos confessou que fora subornado, mas como fez um voto de arrependimento e silêncio, jamais saberemos nada sobre ele... Zacharias desapareceu sem deixar pistas, junto com a mala contendo um milhão de dólares.

Capítulo 16

Bem, nós sobrevivemos e é isso o que importa! A fim de relaxar após todo essa confusão, convidei John para passar um fim de semana com meus pais, que voltaram muito animados da viagem ao Havaí. Sacudindo alegremente dentro do calhambeque, começo a sorrir imaginando-nos atravessando o santuário das aves a cavalo, imitando o canto dos pássaros. Haha! Se continuar assim, vou acabar chamando o John de “boy magia”!

Mas meu sorriso dura pouco. A música no rádio é interrompida por uma notícia urgente.

— Houve um assalto noite passada no Museu Nacional do Cairo. Itens de grande valor histórico desapareceram, mas a administração do museu recusa dar mais detalhes. Um dos seguranças que trabalhava no turno da noite nos porões sobreviveu ao assalto. Ele está em tratamento intensivo, mas os ferimentos não põem em risco sua vida.

O rosto de John é tomado pelo terror. Assim como eu, ele sabe que isso só pode ser obra do Hannibal. Fazemos uma promessa silenciosa de que nós, a “rede” e todos

Capítulo 16

que nos ajudarem, faremos de tudo para evitar que ele continue com seu plano maligno!

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